segunda-feira, 24 de março de 2008

3 - 1º Pedro


Na maior parte das traduções, o título desta carta aparece simplesmente como 1 Pedro. Algumas versões, porém, expandem esse título: "A Primeira Epístola de Pedro" ou "A Primeira Epístola Geral de Pedro". A expressão geral significa que a carta pertence à categoria das epístolas gerais, que é composta de Hebreus, Tiago, 1 Pedro, 2 Pedro, as epístolas de João e Judas.
Supõe-se que, no século II, escribas tenham acrescentado títulos a cada livro do Novo Testamento. Os manuscritos gregos mais antigos têm o título simples 1 Pedro. Porém, manuscritos posteriores revelam que os escribas aumentaram esse sobrescrito, incluindo os termos epístola e geral. Evitando os adornos, adotamos a forma mais curta de título e chamamos a carta de 1 Pedro.

A - Autor
De acordo com o endereço, Pedro enviou esta epístola aos cristãos que eram "forasteiros no mundo, dispersos no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia" (1.1). Esses nomes se referem a regiões que cobrem grande parte da Ásia Menor (Turquia, nos dias de hoje) e indicam que a carta foi lida em muitos lugares. Ela era conhecida nos primeiros séculos? Os pais da igreja afirmam que tinham conheci¬mento da epístola de Pedro.

1. Evidência externa
Por volta de 95 d.C., Clemente de Roma escreve uma carta - 1 Clemente - para a igreja de Corinto. Nela, oferece alguns paralelos com 1 Pedro. O primeiro exemplo encontra-se na saudação da epístola de Clemente, que tem semelhança notável com a da carta de Pedro:

“Àqueles chamados e santificados pela vontade de Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo. Graça e paz do Deus Todo-Poderoso vos sejam multiplicadas em Jesus Cristo.”

No grego, Pedro usa o mesmo vocabulário: chamados, santifica¬dos, graça e paz sejam multiplicadas (1.2). Em seguida, Clemente escreve: "Fixemos nosso olhar no Sangue de Cristo, e saibamos que é precioso ao seu Pai". A alusão às palavras de Pedro "precioso san¬gue... o sangue de Cristo" (1.19) é inconfundível. Em terceiro lugar, o vocabulário de Clemente contém uma série de palavras que aparecem apenas nas epístolas de Pedro. E, por fim, duas das citações do Antigo Testamento (Pv 10.12; 3.34) em 1 Pedro também aparecem na carta de Clemente (4.8 e 1Clem. 49.5; 5.5; e 1 Clem. 30.2).
Na primeira metade do século II, Policarpo escreveu uma carta à igreja de Filipos. Essa carta tem várias citações de 1 Pedro, como por exemplo: "[Jesus Cristo] a quem, não havendo visto, amais; no qual, não vendo agora, mas crendo, exultais com alegria indizível e cheia de glória" (1.3 e 1 Pe 1.8). Mesmo que Policarpo não mencione o nome de Pedro, a fonte das citações é a epístola de Pedro.
Mais para o final do século II (185 d.C.), Irineu não apenas cita 1 Pedro 1.8 como também introduz a citação com as palavras: "e Pedro diz em sua epístola". No século seguinte, Clemente de Alexandria e Tertuliano citam a epístola de Pedro e fazem referência ao nome do apóstolo. O historiador da igreja, Eusébio, observa que Papias, que foi bispo na Ásia Menor (por volta de 125 d.C.), "usou citações da Primeira Epístola de João e, do mesmo modo, também da epístola de Pedro". Em resumo, as evidências externas mostram que a igreja considerava essa epístola autêntica e apostólica.

2. Evidência interna
As epístolas de Pedro testemunham que o apóstolo é o autor pois, na saudação, o escritor se identifica como "Pedro, apóstolo de Jesus Cristo" (1.1). O autor também fala com autoridade e observa que é testemunha ocular do sofrimento de Jesus (5.1). Então, na segunda epístola, o autor declara: "Amados, esta é agora a segunda epístola que vos escrevo" (3.1). E, por fim, Pedro menciona Silas e Marcos e, assim, faz referência aos ajudantes apostólicos cujos nomes eram bem conhecidos na igreja primitiva (ver At 15.22,37; 12.12).
Outra fonte de evidência interna é Atos, onde Lucas registrou alguns dos sermões de Pedro de forma resumida. Pedro pregou para a multidão reunida em Jerusalém para as comemorações do Pentecoste (At 2.14-40), dirigiu-se ao povo que foi ao Pórtico de Salomão (At 3.11-26), falou diante do Sinédrio (At 4.9-12; 5.29-32), pregou na casa de Cornélio (At 10.34-43) e participou do concílio de Jerusalém (At 15.7-11). Os paralelos entre os sermões de Pedro e sua epístola são notáveis. E. G. Selwyn observa: "Poucos poderiam sugerir que os paralelos de idéias e frases entre os discursos e 1 Pedro são basea¬dos numa leitura de São Lucas da Epístola". As evidências, tanto externas quanto internas, apoiam,portanto, a autoria apostólica de 1 Pedro.

3. Objeções
Ainda assim, alguns estudiosos têm objeções em reconhecer Pedro como autor da primeira epístola. Afirmam que encontram várias dificuldades. Eis algumas das principais objeções.

História
Os críticos dizem que, se Pedro é o autor dessa carta, era de se esperar que tivesse incluído nela diversas memórias pessoais. Pedro, porém, escreveu a epístola não como um relato histórico de seu discipulado com Jesus, mas como uma carta de exortação e encorajamento endereçada a cristãos que sofriam. Uma segunda objeção é a seguinte: os sofrimentos mencionados na epístola não podem ser resultado das perseguições que Nero realizou contra os cristãos. Alguns estudiosos partem do pressuposto de que as perseguições de Nero parecem ter se limitado à cidade imperial, e não se espalhado para as províncias (onde viviam os leitores da epístola). Assim, de acordo com aqueles que duvidam da autoria apostólica, a epístola foi escrita não durante o reinado do imperador Nero, mas, sim, mais tarde, durante o governo de Domiciano ou Trajano. De acordo com esse ponto de vista, Pedro não é o autor da epístola que leva o seu nome, pois ele faleceu no tempo de Nero.
Todavia, as evidências são poucas para provar que uma perseguição geral aconteceu nas províncias romanas durante o governo de Domiciano. Apesar de Domiciano ter sido um perseguidor que vitimou cristãos, não há nenhuma indicação de que ele tenha instigado uma perseguição que afetasse os residentes de todas as províncias. Além disso, também são insuficientes as evidências para provar que Trajano adotou e executou as medidas recém declaradas contra os cristãos. Além do mais, a afirmação de que a perseguição de Nero limitou-se a Roma e não se estendeu pelas províncias continua sendo duvidosa. Se não há os fatos necessários para estabelecer um momento na história, bem fazem os estudiosos em evitar comentários dogmáticos.
O conteúdo de 1 Pedro revela que os leitores são da primeira geração de convertidos, pois "não há nenhum traço de Cristianismo de segunda geração". As evidências internas da epístola, portanto, parecem apontar para a época de Nero, e não para o governo de Domiciano ou Trajano.
Uma terceira objeção está relacionada aos respectivos campos missionários de Pedro e Paulo. Os críticos argumentam que Pedro não poderia ter escrito uma carta para as igrejas que Paulo havia fundado. Mas nem Atos e nem as epístolas de Paulo apresentam provas de que Paulo - o apóstolo dos gentios - tenha fundado igrejas em Ponto, Ca¬padócia e Bitínia. Na verdade, acontece o contrário, pois Lucas relata que o Espírito de Jesus não permitiu que Paulo e seus companheiros entrassem na Bitínia (At 16.7). Além do mais, o argumento dos críticos perde sua força quando levamos em consideração a visita de Pedro à igreja de Corinto - uma igreja fundada por Paulo (ver 1 Co 1.12; 9.5).

Estilo
Os estudiosos que são contra a autoria de Pedro afirmam que um pescador sem estudos de um vilarejo à beira do lago da Galiléia seria incapaz de redigir uma carta em grego excelente. Como prova, usam a referência de Atos 4.13, na qual ele observa que os membros do Sinédrio notaram a intrepidez de Pedro e João e também que eram "homens iletrados e incultos". Werner Georg Küimmel afirma: "A linguagem de 1 Pedro é um grego impecável que usa de vários recursos retóricos: a ordem das palavras (1.23; 3.16), orações paralelas (4.11), séries de palavras compostas (1.4), e as muitas citações e alusões ao Antigo Testamento, sem exceção, têm origem na Septuaginta. Essas características são inconcebíveis para Pedro, o galileu".
Antes de avaliarmos essa objeção, devemos observar uma série de pontos. Em primeiro lugar, no século VIII antes de Cristo, Isaías já chamava a Galiléia de "Galiléia dos gentios" (Is 9.1; ver também Mt 4.15). No tempo de Jesus, a Galiléia era profundamente influenciada pela cultura da Grécia e o povo conhecia a língua grega. Tanto Mateus quanto Tiago, por exemplo, eram da Galiléia e redigiram respectivamente um evangelho e uma carta em grego aceitável.
Também, depois de Pedro ter deixado Jerusalém (At 12.17), ele viajou muito para regiões onde o grego era a primeira língua da população. Por meio de seus discursos registrados em Atos, sabemos que ele era capaz de se expressar bem; partimos do pressuposto de que ele desenvolveu seus conhecimentos de oratória e escrita du¬rante os anos de seu apostolado.
Por fim, Pedro informa aos leitores de que escreveu sua epístola com a ajuda de Silas (5.12). Cometeríamos uma injustiça ao texto se considerássemos que Silas foi apenas o mensageiro que levou a carta, e não um escriba colaborador. A partir do relato de Lucas em Atos, sabemos que Silas era um líder na igreja (15.22), um profeta (15.32), um companheiro de trabalho de Paulo (15.40) e um cidadão romano (16.37). Paulo menciona Silas em três de suas epístolas (2Co 1.19; ITs 1.1; 2Ts 1.1). Mesmo considerando que não estamos certos da assistência de Silas na redação das cartas de Paulo, temos certeza de sua colaboração na composição de 1 Pedro.
Não temos que supor que Silas escreveu o esboço da epístola de Pedro, pois então faríamos dele o autor da epístola, ao invés de Pedro. É mais aceitável afirmar que Pedro escreveu a carta e Silas o auxiliou, assim como Tércio ajudou Paulo a escrever a Epístola aos Romanos (Rm 16.22).
Basta dizer que os judeus e cristãos das províncias liam a Septuaginta grega, ao invés do texto em hebraico. Ao escrever sua epístola, Pedro usa a Septuaginta para comunicar de maneira mais eficaz a revelação de Deus.

Composição
Uma última objeção à autoria de Pedro diz respeito à composição da epístola. A carta parece ser uma obra composta de duas partes, pois possui duas conclusões separadas. De acordo com os críticos, em 4.11, o autor escreve uma doxologia que termina com a palavra amém. Em algumas versões, o versículo seguinte começa com o conhecido "amados" e, assim, marca o início de uma segunda carta. Além disso, o texto de 5.10,11 é uma conclusão em forma de oração, doxologia e amém. As saudações finais vêm de outro escritor. Os autores do Novo Testamento, porém, inserem doxologias em várias partes de seus discursos. Tome, por exemplo, a epístola de Paulo aos Romanos, que tem várias bênçãos (1.25; 9.5; 11.36; 15.33; 16.20,24 [há variações nos textos], 27). Finalmente, o argumento de que a expressão amados marca o começo de uma nova carta não pode ser aplicado de modo coerente. Pedro também usa essa expressão em 2.11, onde o contexto simplesmente não permite que haja uma separação. Em resumo, foi Pedro quem compôs a carta, seguindo o estilo comum de sua época.

Inferência
Tendo como base tanto as evidências internas quanto as externas, além das considerações históricas e estilísticas, aceitamos 1 Pedro como um livro apostólico escrito por Pedro. Concluímos, também, que esse ponto de vista tradicional "parece ser mais razoável do que qualquer outra hipótese alternativa".

B - Fonte
Os nomes Pedro e Paulo aparecem sempre nessa sequência. Essa ordem pode ser atribuída ao fato de Pedro, e não Paulo, ser um dos primeiros discípulos e, juntamente com Tiago e João, filhos de Zebedeu, fazer parte do círculo mais íntimo dos discípulos de Jesus. Depois da ascensão de Jesus, Pedro tornou-se líder dos 11 apóstolos e da igreja que nascia em Jerusalém. Acompanhado de João, Pedro foi a Samaria para reconhecer a aceitação dos samaritanos na igreja cristã (At 8.14-25), e Pedro pregou o evangelho na casa de Cornélio, um centurião romano (At 10.27-48).
Apesar de Paulo se autodenominar "o menor dos apóstolos" (lCo 15.9), ele é mais conhecido do que Pedro. Paulo alcançou proeminência por causa das 13 epístolas que escreveu. Entre suas cartas encontram-se a epístola sobre a liberdade cristã (Gálatas), o tratado do Cristianismo (Romanos) e as epístolas pastorais a Timóteo e Tito. Paulo é o teólogo da igreja primitiva, mas, ainda assim, a carta de Pedro não deve ser deixada de lado.
Pedro também é um teólogo, conforme mostra claramente a sua primeira epístola. Ele combina o ensino teológico com conselhos práticos para o viver cristão, de modo que, do começo ao fim, sua epístola é um documento didático. Tendo em vista que, já nos sermões que Lucas registrou em Atos, Pedro demonstra sua perspicácia teológica, em sua primeira epístola nos vemos diante de Pedro como um teólogo.

É provável que não haja nenhum documento no Novo Testamento que seja tão teológico quanto l Pedro, se considerarmos 'teológico' estritamente aquilo que diz respeito ao ensino sobre Deus. Pedro cita características de Deus: santidade, bondade, fidelidade e graça. Refere-se à obra divina de eleger, regenerar, redimir e julgar seu povo. Pedro define, ainda, sua doutrina de Cristo ao revelar a divindade, hu¬manidade e ausência de pecado em Jesus. Trata, também, do ministério do Espírito Santo, da igreja primitiva e do fim dos tempos.

1. Dependência de Paulo
Antes de discutirmos a teologia de Pedro propriamente dita, devemos fazer algumas perguntas. Em primeiro lugar, Pedro depende de Paulo em sua teologia? Não, pois faltam-nos evidências de que Pedro tenha copiado, sem nenhuma originalidade, as epístolas de Paulo. Sem dúvida, ele estava completamente a par dos escritos de Paulo (ver especialmente 2Pe 3.15,16), pois são muitas as alusões às epístolas de Paulo em suas cartas, mas as semelhanças podem ser atribuídas a interesses mútuos e à discussão de questões doutrinárias. O paralelismo dos escritos de Pedro e Paulo, portanto, pode ser explicado pelo respeito mútuo entre os dois apóstolos, bem como pelo ponto de vista que um toma emprestado do outro, ou seja, esses dois apóstolos têm um relacionamento caracterizado pela interdependência. Não é impensável a possibilidade de terem se encontrado pessoalmente em Jerusalém, na Ásia menor, Macedônia, Grécia ou Itália. Aliás, sabemos de alguns desses encontros por referências na epístola de Paulo aos gálatas (Gl 1.18; 2.9,11-14) e em Atos (15.2,7).
Além do mais, pelo fato de Paulo incentivar os crentes a lerem suas cartas nas igrejas, Pedro conhecia seu conteúdo (2Pe 3.15,16). Devemos tomar cuidado, porém, para não supormos que Pedro dependia completamente das epístolas de Paulo. A verdade é que Pedro escreveu suas epístolas como um autor independente.

2. Dependência de Tiago
Em segundo lugar, Pedro depende da Epístola de Tiago? O paralelismo entre Tiago 4.6-10 e l Pedro 5.5-8 é inegável. Ambos os autores citam Provérbios 3.34, ambos mencionam a submissão e a humildade, ambos fazem referência ao diabo. Uma rápida observação dos paralelos, entretanto, é suficiente para ver a diferença: a versão de Pedro é mais extensa que a de Tiago. Se adotarmos a regra geral de que o texto mais curto é provavelmente o original, concluímos que Pedro estava familiarizado com a carta de Tiago. Ele tomou emprestado seu texto e o expandiu. Eis os paralelos:

Tiago 4.6,7a,10 — Pelo que diz: "Deus se opõe ao soberbo, mas dá graça ao humilde". Submetam-se, portanto, a Deus... Humilhem-se diante do Senhor e ele os levantará.

1 Pedro 5.5,6 — Rapazes, do mesmo modo sejam submissos àqueles que são mais velhos. Todos vocês, vistam-se de humildade uns para com os outros, pois "Deus se opõe aos soberbos, mas dá graça aos humildes". Humilhem-se, portanto, sob a poderosa mão de Deus, para que ele possa exaltar vocês no devido tempo.

Tiago 4.7b — Resistam ao diado e ele fugirá de vós.

1Pedro 5.8 — O seu inimigo, o diabo, ronda como um leão que ruge, procurando alguém para devorar.

São várias as semelhanças entre a epístola de Tiago e l Pedro. Veja, por exemplo, Tiago 1.1 e 1 Pedro 1.1; Tiago 1 .2,3 e 1 Pedro 1 .6,7; Tiago 1.10,11 e 1 Pedro 1.23. Por causa de uma afinidade que havia entre os dois, Pedro não só conhecia a Epístola de Tiago, mas também havia estabelecido com ela um relacionamento de interdependência.

3. Palavras de Jesus
Por fim, a epístola de Pedro inclui muitas palavras de Jesus, algumas das quais são óbvias; outras são indicadas por sinónimos. Eis um paralelo claro:

João 20.29 — "Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram, e creram."
IPedro 1.8 — Apesar de vocês não o terem visto, vocês o amam; e mesmo que vocês não o vejam agora, crêem nele e estão cheios de uma alegria inexprimível e gloriosa.

Em cada capítulo de sua epístola, Pedro faz alusão às palavras de Jesus. Robert H. Gundry observa: "Um exame das passagens do evangelho onde [essas palavras de Jesus] aparecem mostra que, na maioria dos casos, o apóstolo Pedro é um participante especialmente ativo nos contextos narrativos". De fato, Pedro se lembrava dos ensinamentos de Jesus e, além disso, havia ensinado o evangelho du¬rante décadas quando escreveu sua epístola.

C. Teologia

1. Doutrina de Deus
Pedro ensina claramente a doutrina do Deus Triúno logo no começo de sua epístola.
Deus, o Pai, elegeu seu povo de acordo com sua presciência, Jesus Cristo verteu seu sangue por ele e o Espírito o santificou (1.1,2). As três pessoas da Trindade tomam parte na redenção do pecador. Pedro se refere a Deus Pai em duas outras partes (1.3,17). Em sua epístola, ele revela a soberania de Deus. Deus pré-ordena (1.2; comparar com 2.9), cria (4.19) e governa ao estender sua vontade sobre a vida do crente: na conduta (2.15), no sofrimento (3.17; 4.19) e na vida em geral (4.2).
Alguns dos atributos de Deus observados por Pedro são santidade, bondade, fidelidade e graça. Ao citar o Antigo Testamento (Lv 11.44,45), Pedro ensina que Deus é um Deus santo que ordena que seu povo seja santo, assim como ele o é (1.15,16). Ele escreve que "o Senhor é bondoso" (2.3). Observa ainda a fidelidade de Deus numa exortação aos crentes para que "encomendem as suas almas ao fiel Criador" (4.19). Além disso, menciona a graça eletiva de Deus (2.9,10), o dom da graça divina (4.10,11) e o dom da graça "na revelação de Jesus Cristo" (1.13).
Pedro revela que Deus demonstra uma possessividade para com seu povo quando escreve: "Mas vocês são um povo escolhido, um sacerdócio real, uma nação santa, um povo pertencente a Deus" (2.9). Com uma referência a Oséias 2.23, Pedro declara que os leitores que, no passado "não [eram] povo", passaram a ser chamados de "povo de Deus" (2.10), isto é, Deus lhes deu um novo nascimento (1.3), de modo que fossem "nascidos de novo, não de semente perecível, mas imperecível" (1.23). Pedro diz que Deus redimiu seu povo não com coisas perecíveis (prata e ouro), mas com o precioso sangue de Jesus Cristo (1. 18,19). E, por fim, Deus julga o seu povo no dia do julgamento, quando começa com a família de Deus e em seguida trata daqueles que desobedeceram à sua Palavra (4.17).
Em resumo, a doutrina de Deus é central na epístola de Pedro. Francis Wright Beare escreve: "Claramente, a idéia dessa carta não é cristocêntrica, mas teocêntrica, começa e volta constantemente para a ideia de Deus como Criador, Pai e Juiz".

2. Doutrina de Cristo
Apesar de Pedro não desenvolver uma doutrina de Cristo, implicitamente ele dirige a atenção para a humanidade e a divindade de Jesus. Ele pressupõe a humanidade de Jesus, pois nos admoesta a seguir os passos de Cristo, que é nosso exemplo (2.21). Refere-se também ao corpo de Cristo no madeiro (2.24), no qual Cristo morreu por nossos pecados (3.18). Além disso, Pedro também declara que Cristo sofreu em seu corpo (4.1) e que o próprio apóstolo foi testemunha do sofrimento de Cristo (5.1).
Com citações e alusões à profecia de Isaías, Pedro ensina a ausência de pecado em Cristo. "Ele não cometeu pecado, nem engano algum foi achado em sua boca" (2.22; Is 53.9). Tendo em vista que o Cristo sem pecado tomou nossos pecados sobre si na cruz (2.24), Pedro diz: "pelas feridas dele vocês foram curados" (v. 24; Is 53.5). Cristo, o "cordeiro sem defeito" (1.19; Is 53.7), morreu pelo injusto (3.18). Pedro ensina a doutrina da expiação quando aponta para a "aspersão do sangue de Jesus Cristo" (1.2) e para a redenção do crente com o "precioso sangue... de Cristo" (1.19).
Indiretamente, Pedro trata da divindade de Jesus Cristo. Ele o faz ao colocar Jesus no mesmo nível de Deus Pai e ao mencioná-los juntos em pelo menos dois versículos (1.2,3). Assim, Pedro exige a crença na filiação singular de Cristo. Para o apóstolo, Jesus é Se¬nhor (1.3; 3.15), assim como o Pai é Senhor (1.25; 3.12).
Pedro menciona a ascensão e a ressurreição de Cristo? Sim, de maneira bastante direta. No começo de sua carta, ele escreve que Deus Pai "nos deu um novo nascimento para uma esperança viva por intermédio da ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos" (1.3) e, quando discute o batismo, observa que "também salva vo¬cês... pela ressurreição de Jesus Cristo" (3.21). Até mesmo as palavras da benção de Pedro - "que chamou vocês para sua glória eterna em Cristo" - deixam subentendidas a ressurreição de Jesus (5.10). Assim, Donald Guthrie afirma com franqueza:

“Se o apóstolo Pedro não tivesse nenhuma ligação com a primeira epístola que leva o seu nome (e há bons motivos para afirmar que ele teve), seu testemunho da ressurreição de Cristo seria de valor inestimável, não simplesmente por causa de seu ofício apostólico, mas especialmente porque, como antigo discípulo do Jesus histórico, ele passara a aceitar o que um dia afirmara ser impensável - o sofrimento e ressurreição do Messias.”

Devemos admitir que os comentários de Pedro sobre a ascensão limitam-se a um determinado versículo. Escreve: "Jesus Cristo, o qual, depois de ir para o céu, está à destra de Deus" (3.21,22). Ainda assim, essa única referência é suficiente, pois, consoante ao resto do Novo Testamento, Pedro aponta para a posição exaltada de Cristo (ver At 1.9-11; Hb 1.3; 4.14; 12.2). Anjos, autoridades e potestades estão sujeitos a ele (3.22; Ef 1.21; 6.12).

3. Espírito Santo
Há poucas referências ao Espírito Santo na epístola de Pedro (1.2,11,12; 4.14).
Apesar de serem esparsas, elas descrevem de maneira ampla a obra do Espírito Santo. Essa obra vai da santificação do eleito (1.2) e previsão do sofrimento de Cristo e "sobre as glórias que o seguiram" (1. 11) até a orientação àqueles que "vos pregaram o evangelho" (1.12). O Espírito Santo não apenas assume um papel ativo na ressurreição de Cristo (3.18), como também, na forma de Espírito de glória, repou¬sa sobre os cristãos que sofrem (4.14).
Com as palavras Espírito de Cristo, Pedro liga o Espírito Santo diretamente a Jesus Cristo (1.11). Essa escolha de palavras aparece nas epístolas de Paulo (Rm 8.9; Fp 1.19), que também fala do Espírito do Filho de Deus (Gl 4.6). E, por último, Lucas relata que quando Paulo e seus companheiros tentaram entrar na Bitínia, o Espírito de Jesus não permitiu que assim o fizessem (At 16.7).

4. A Igreja
Pedro não usa o termo igreja em parte alguma de sua epístola. Ainda assim, lança mão de uma série de expressões para descrever o povo de Deus. Retrata, por exemplo, os seguidores de Jesus Cristo como "eleitos" e "forasteiros do mundo" (1.1). Para Pedro, os crentes são "povo escolhido, um sacerdócio real, uma nação santa, um povo pertencente a Deus" (2.9). Pedro tira esses termos do Antigo Testamento, de modo que ele vê os membros da igreja de Cristo como uma continuação do Israel espiritual. O povo de Israel, mostrado no Antigo Testamento, recebeu a revelação divina de que era o povo escolhido de Deus que pertencia a ele (ver Dt 10.15; ISm 12.22). Além disso, os termos descritivos sacerdócio real e nação santa assemelham-se às instruções dadas por Deus a Israel no Sinai: "Vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa" (Êx 19.6; ver também Dt 7.6; Is 62.12). Pedro também chama Jesus de Pastor espiritual e Bispo do povo de Deus (2.25). Assim como Jesus é o Pastor Maior, Pedro e seus companheiros presbíteros são pastores responsáveis diante de Jesus pela supervisão do rebanho (5.1-4). Mesmo que Pedro se identifique como apóstolo (1.1), ele se coloca no nível dos presbíteros. Com modéstia, ele se autodenomina "presbítero como eles" (5.1), e assim serve de exemplo para aquilo que exorta os presbíteros a fazerem, ou seja, pastorear não "dominando sobre aqueles que lhes foram confiados, mas sendo exemplos para o rebanho" (5.3).
Por fim, do início à conclusão de sua epístola, Pedro designa tanto a igreja quanto Jesus como sendo eleitos de Deus (1.2; 2.4,6,9; 5.13). Por isso, Pedro conclui dizendo que os leitores encontram-se "em Cristo" (5.14).

5. Escatologia
Tendo em vista o sofrimento intenso suportado pelos leitores, Pedro dá alguma indicação de que estão vivendo os últimos dias, nos quais a vinda de Jesus é iminente? Pedro é um tanto direto ao expressar suas expectativas. Diz: "Ora, o fim de todas as coisas está próximo" (4.7). Essa é uma indicação de que Pedro espera que Jesus volte em breve (comparar com Tg 5.9). Em outras passagens, Pedro revela que ele e seus contemporâneos estão vivendo nos últimos dias (1.5; 2.12). Ele encoraja os cristãos que estão sofrendo ao dizer-lhes que Deus irá tirá-los de seu sofrimento e levá-los para a glória (4.13; 5.10).
A herança do crente não está na terra, mas é guardada por Deus no céu (1.4). O que é o céu, na visão de Pedro? O céu é o lugar em que Jesus está à destra do pai e onde anjos, autoridades e potestades estão sujeitos a ele (3.22). Pedro descreve o céu como o lugar onde habita o Espírito Santo e onde os anjos desejam perscrutar a salvação dos seres humanos.
Pedro também fala do julgamento dos crentes e daqueles que desobedecem a Deus. Na verdade, Pedro esclarece que, para a família de Deus, o tempo do julgamento está aqui. "Se ele começa conosco, qual será o resultado para aqueles que não obedecem ao evangelho" (4.17)? Para justificar suas palavras, ele apela para uma passagem do Antigo Testamento: "E se é com dificuldade que o justo é salvo, onde vai comparecer o ímpio, sim, o pecador?" (v. 18; Pv 11.31).

6. Vontade de Deus
Os apóstolos encorajam os cristãos a viverem de maneira exemplar para que os pagãos possam reconhecer as boas obras e até mesmo glorificar a Deus (2.12). O tema ao qual Pedro sempre volta é o do dever cristão de fazer o bem (2.15,20; 3.6,17). Eles devem viver e sofrer em obediência à vontade de Deus (4.2,19). Os cristãos sabem que a vontade de Deus é que determina suas vidas, pois ele espera que seu comportamento ganhe outros para Cristo. Pedro apela diretamente para o exemplo que Cristo deu e, assim, aconselha os leitores a seguirem os passos de Jesus (2.21). Concluindo, o cristão não pode agir de maneira independente do exemplo de Jesus, mas deve estar sempre em Cristo.

D. Leitores

1. Regiões
Quem são os destinatários das epístolas de Pedro? A partir do endereço, ficamos sabendo que eles vivem na Ásia Menor (hoje em dia, Turquia) - em suas regiões oriental, central e ocidental e naquelas à beira do Mar Negro. Pedro escreve "aos eleitos que são forasteiros no mundo, dispersos no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia" (1.1). Sabemos que habitantes dessas regiões estavam em Jeru¬salém no dia de Pentecoste (At 2.9-11) e ouviram o evangelho ser proclamado pelos apóstolos. Supomos que alguns dentre os três mil convertidos à fé cristã eram da Capadócia, Ásia e Ponto (At 2.9,41). Durante suas viagens missionárias, Paulo fundou igrejas em algumas dessas províncias (ver At 16.6; 18.23; 19.10,26).
Se reconhecermos que Pedro escreveu essa epístola em Roma, é de se esperar que ele use os nomes Ponto, Galacia, Capadócia, Ásia e Bitínia para referir-se às províncias romanas, e não às regiões geográficas. Pedro, porém, menciona Ponto e Bitínia separadamente, mesmo que os administradores romanos tivessem transformado es¬sas duas áreas numa única província. Observe também que os nomes Pisídia, Frigia, Panfília e Cilícia, conhecidos por causa das viagens de Paulo, não aparecem aqui. Esses nomes normalmente são associados à região Sul da província da Galácia. Concluímos, portanto, que Pedro dirige sua carta para "o resto da Ásia Menor que não havia sido evangelizada por Paulo".

2. Judeus e gentios
Os destinatários eram judeus, gentios, ou havia ambos? As várias citações e alusões do Antigo Testamento dão a impressão de que os leitores eram judeus. Além disso, as palavras introdutórias são bastante judaicas: "Ao povo eleito de Deus, forasteiros do mundo" (1.1). Essas eram palavras-chaves para um judeu vivendo fora de Israel: ele se considerava entre os eleitos de Deus, sabia que era um forasteiro no mundo e vivia na Dispersão. Além disso, enquanto Paulo era o missionário dos gentios, Pedro era o apóstolo dos judeus (Gl 2.7-9).
Todavia, a distinção entre Pedro e Paulo não deve ser determinada de forma muito rígida, pois em Atos e nas epístolas de Paulo lemos que ele ministrou as boas-novas a judeus e gentios. Em seu discurso de despedida aos presbíteros de Éfeso, na praia de Mileto, por exemplo, Paulo diz: "Testificando tanto a judeus como a gregos o arrependimento para com Deus e a f é em nosso Senhor Jesus [Cristo]" (At 20.21; ver também Rm 1.16). Em sua segunda viagem missionária, enquanto estava em Corinto, "Paulo se entregou totalmente à palavra, testemunhando aos judeus que o Cristo é Jesus" (At 18.5).
Apesar de se saber pouco sobre o trabalho de Pedro depois que ele deixou Jerusalém e "retirou-se para outro lugar" (At 12.17), estamos certos de que também pregou a judeus e gentios. Numa ocasião anterior, o próprio Pedro havia entrado na casa de Cornélio, onde disse: "Vós bem sabeis que é proibido a um judeu ajuntar-se ou mesmo aproximar-se de alguém de outra raça, mas Deus me demonstrou que a nenhum homem considerasse comum ou imundo" (At 10.28). Suas epístolas oferecem indicações esparsas de que alguns de seus leitores eram gentios. Assim, Pedro lembra seus leitores de que antes eles viviam na ignorância (1.14), que foram "resgatados do [seu] fútil procedimento que [seus] pais [lhes] legaram (1.18), que "antes não [eram] povo, mas agora [são] povo de Deus" (2.10) e de que, no passado, tinham desperdiçado seu tempo "[executando] a vontade dos gentios" (4.3).
Levando em consideração a miscigenação da população nas províncias da Ásia Menor, somos da opinião de que tanto judeus quanto gentios receberam o evangelho de Cristo e aceitaram pela fé o chamado dos apóstolos. Além disso, algumas pessoas, às quais Pedro se dirige, eram escravas. Podemos inferir que muitos desses escravos eram gentios (2.18-20).
Através de suas sinagogas locais na Ásia Menor, Macedônia e Grécia, o povo judeu evangelizou a população gentia, de modo que muitos ficaram conhecidos como "tementes a Deus" (At 10.2; 13.26,50; 17.4,17). Os gentios tementes a Deus aceitaram o evangelho de Cristo e se tornaram membros da igreja em conjunto com os judeus cristãos.

3. Perseguições
Em quatro dos cinco capítulos de sua epístola, Pedro faz alusão à perseguição aos cristãos. Deixa implícito que os crentes estão vivendo tempos difíceis, pois, como uma minoria, sofrem a rejeição do resto da população. Escravos cristãos suportam o sofrimento injusto na mão de senhores cruéis (2.18-20) e crentes são difamados por pagãos que acham estranho os cristãos terem deixado de lado seu estilo de vida dissoluto (4.3,4).
As passagens nas quais Pedro se refere indiretamente à perseguição são as seguintes: 1.6,7; 3.13-17; 4.12-19; 5.9. Na primeira referência, aparece a palavra provações: "Sejais contristados por várias provações" (1.6). Na segunda, as frases de linguagem legal são proeminentes: "preparados para responder", "com mansidão e temor", "com boa consciência", "àqueles que falam maliciosamente contra o seu bom comportamento" (3.15,16). Na terceira passagem, a terminologia de tribunal fica mais uma vez evidente: "injuriados", "assassino, ou ladrão ou malfeitor" e "juízo" (4.12-17). Por fim, o sofrimento pelo qual os cristãos passavam se estendia de modo vasto: "Os seus irmãos por todo o mundo estão passando pelo mesmo tipo de sofrimento" (5.9). A epístola de Pedro, porém, dá poucos detalhes sobre os procedimentos oficiais nos tribunais contra os cristãos. Além disso, em sua carta, o termo perseguição não aparece. Devemos evitar, portanto, tentar inserir fatos históricos específicos no texto desta epístola.
Historiógrafos registraram informações sobre as perseguições instigadas pelos imperadores romanos. Nero, que governou de 54 a 68 d.C., ateou fogo em dois terços das residências e prédios de Roma em julho de 64 e culpou os cristãos por esse ato. Apesar de historiadores romanos contarem que Nero queimou cristãos na fogueira em Roma, não podemos provar que a tradução o fogo ardente (4.12) deva ser interpretada literalmente. Se considerarmos a palavra arden¬te de modo figurativo, damos sentido mais amplo a ela do que se a limitarmos a uma única referência a um acontecimento específico. Considere, por exemplo, a questão da coerência exegética. Se adotamos a regra da hermenêutica de deixar que as Escrituras sejam sua própria intérprete, então devemos comparar o "fogo ardente" de 4.12 com as provações descritas em 1.6,7. Nessa passagem (1.6,7), Pedro explica o conceito de provação com uma ilustração do ouro que é purificado pelo fogo. Ele conclui que esse processo ardente de purificação é necessário para provar quão autêntica é a fé do crente (1.7). Em resumo, as evidências que ligam a expressão fogo ardente à incidência de cristãos sendo queimados a mando de Nero não é indiscutível.
Os cristãos eram perseguidos "pelo nome de Cristo" (4.14). Esse nome em si era motivo suficiente para levar um cristão ao tribunal. Jesus previu que isso aconteceria quando disse: "Por minha causa sereis levados à presença de governadores e de reis" (Mt 10.18). Não devemos ligar a perseguição à qual Pedro faz alusão diretamente a Plínio, o governador da Bitínia de 109 a 111 d.C. Plínio dirigiu uma inquisição contra os cristãos naquela província e perguntou ao imperador Trajano se deveria perseguir os cristãos por causa "do nome em si".26 Não temos, porém, nenhuma indicação de que a inquisição no tempo de Trajano tenha sido realizada em todos os domínios romanos. Ao que tudo indica, estamos diante de uma única incidência de perseguição mencionada na correspondência entre Plínio e Trajano, mas não de uma perseguição oficial patrocinada pelo imperador. Concluímos dizendo que as perseguições mencionadas na epístola de Pedro parecem ser perturbações locais geradas por pessoas que ex¬pressavam seu ódio aos cristãos.

E. Data e Local
Se aceitamos a autoria apostólica de 1 Pedro, eliminamos uma data mais recente para essa epístola (durante o reinado de Domiciano, no começo da década de 90, ou durante o reinado de Trajano, entre 110-111). Aceitamos, portanto, uma data de redação anterior a 68, quando Nero cometeu suicídio. De acordo com a tradição, Pedro foi crucificado nas cercanias de Roma nos últimos anos do governo de Nero. Pelo fato de 1 Pedro ter várias referências às epístolas de Paulo, presumimos que Pedro tenha escrito sua epístola depois de Paulo ter escrito as suas. Romanos foi escrito em 58, quando Paulo terminou sua terceira viagem missionária, e Paulo escreveu Efésios e Colossenses quando passou dois anos (61-63) em Roma sob prisão domiciliar. Assim, devemos estabelecer a data para 1 Pedro depois da elaboração dessas epístolas na prisão.
Uma segunda indicação de uma data mais antiga é a referência aos presbíteros e seus deveres (5.1-4). Pedro se autodenomina um presbítero como eles e, assim, coloca-se no mesmo nível dos presbíteros que serviam nas igrejas locais. Suas instruções aos líderes oficiais nessas congregações estão de acordo com as instruções de Paulo a Timóteo e Tito no que diz respeito à qualificação dos presbíteros e diáconos (ITm 3.1-13; Tt 1.5-9). Paulo escreveu essas duas epístolas pastorais aproximadamente em 63-64. Sabemos que Pedro estava a par das epístolas escritas por Paulo e as considerava Escrituras (consultar 2Pe 3.16).
Além disso, a epístola não tem qualquer indicação de que seja dirigida a cristãos da segunda geração, de modo que uma data na década de 60 parece plausível. É mais provável que esse tipo de situação que prevalecia simultaneamente em um número considerável de comunidades na Anatólia (hoje em dia, Turquia) tenha ocorrido mais cedo - e não mais tarde - no período que estamos considerando.
Uma quarta indicação é que Pedro exorta os leitores a serem submissos ao rei e honrá-lo (2.13,17). Dificilmente seria de se esperar essa exortação, caso Pedro tivesse escrito depois de Nero haver executado vários cristãos, depois do incêndio de Roma, em 64. As¬sim, datamos a redação de 1 Pedro em 63 ou começo de 64.
A referência de Pedro à Babilónia (5.13) é tradicionalmente vista como um nome em código para Roma. O caráter secreto por meio do qual Pedro transmite saudações reflete não apenas os tempos perigo¬sos em que ele e seus leitores viviam, como também o desejo de proteger a igreja de algum possível mal. Pedro escreve: "Aquela que se encontra em Babilónia, escolhida juntamente com vocês, envia suas saudações" (v. 13). Se a intenção de Pedro era dizer que sua esposa (lCo 9.5) mandava lembranças, ele teria acrescentado suas próprias saudações. Tendo em vista que a referência de Pedro a uma senhora não pode estar relacionada à sua esposa, os estudiosos interpretam esse versículo de modo figurativo. Dizem que a igreja eleita de Jesus Cristo está enviando suas saudações às igrejas da Ásia Menor. Com frequência, os autores do Novo Testamento apresentam a igreja em termos femininos.
A expressão “aquela” se refere à igreja da Babilónia. Mas se Pedro fala figurativamente, será o termo Babilónia também simbólico? Sim, pois não temos nenhuma evidência de que Pedro tenha viajado para a Babilónia para pregar o evangelho ali. Além do mais, uma tentativa de igualar Babilónia a um forte militar romano no Egito parece pouco provável. Desse modo, os estudiosos optam pela explicação de que o termo é um pseudónimo para Roma. Tomando como referência o livro de Apocalipse e escritos judaicos, vemos que era comum chamar Roma de "Babilónia". Os escritores judeus o faziam por causa da semelhança entre os babilónios, que destruíram o templo de Salomão em 586 a.C., e os romanos, que destruíram Jerusalém em 70 d.C. Em Apocalipse, "Roma é Babilónia não porque havia destruído a Cidade Santa, mas por ser a mãe de meretrizes e abominações".
A tradição afirma que Pedro passou algum tempo na cidade imperial e foi martirizado em seus arredores. Parece crível a suposição de que Pedro tenha escrito sua epístola em Roma, pois as evidências da tradição apontam para Roma como o lugar de sua redação. Papias, bispo de Hierápolis (125 d.C.), relata que Marcos era intérprete de Pedro. Além disso, Irineu comenta que tanto Pedro quanto Paulo pregaram em Roma e que depois, "Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, também nos entregou de forma escrita o que havia sido pregado por Pedro". Os patriarcas da igreja não hesitam em ligar Pedro a Roma, onde o apóstolo escreveu sua primeira epístola.

F. Estrutura

1. Propósito
Qual é o propósito de 1 Pedro? À primeira vista, não conseguimos descobrir qualquer objetivo, e acabamos concluindo que o autor não declara qualquer propósito. Mas esse não é o caso, pois, no final de sua epístola, Pedro formula uma breve explicação sobre o propósito de seus escritos: encorajar os leitores a testemunharem sobre a verdadeira graça de Deus (5.12). Essa declaração breve, na verdade, resume o que Pedro está dizendo aos leitores em outras partes da carta (1.1,2; 4.12-5.14). Ele encoraja os cristãos que estão sofrendo a esperarem e aceitarem as dificuldades que encontram por causa de sua fé em Cristo. Pedro os exorta a manterem-se firmes. Pede que compartilhem do sofrimento de Cristo e participem de sua glória(4.13,14).
Em resumo, o propósito de Pedro ao escrever essa carta era o desejo de transmitir uma mensagem de esperança e encorajamento. A palavra esperança é uma palavra-chave que aparece cinco vezes em 1 Pedro (1.3,13,21; 3.5,15). Pedro escreve uma carta de esperança para os cristãos que estão passando por intenso e frequente sofrimento.

2.Tema
Apesar dos estudiosos encontrarem mais de um tema nas epístolas de Pedro, eles concordam que o tema sofrimento está entretecido na trama de toda a carta. Pedro discute esse tema em cada um dos capítulos. Em sua primeira referência explícita, ele afirma que os leitores "mesmo que por um pouco de tempo vocês tenham precisado passar por profunda tristeza em todo tipo de provação" (1.6). Em sua última declaração, ele fala mais uma vez da brevidade do sofrimento: "E o Deus de toda graça, que chamou vocês para sua glória eterna em Cristo, depois que vocês tiverem sofrido por um pouco, irá, ele próprio, restaurar vocês e fazê-los fortes, firmes e inabaláveis" (5.10). Entre um texto e outro, Pedro menciona o sofrimento em várias passagens.
Os cristãos suportam o sofrimento num mundo que não é seu lugar. Eles são forasteiros no mundo e, portanto, são rejeitados por ele. Como resultado, recebem escárnio e desprezo. Experimentam o sofrimento por causa do nome de Cristo. Observe, então, que Pedro se dirige aos leitores não como irmãos e irmãs no Senhor, mas como "forasteiros na Dispersão" (1.1). Ele os chama de "peregrinos e forasteiros" (2.11). Pedro não defende um isolamento do mundo. Pelo contrário, ele exorta os cristãos a terem uma vida exemplar no mundo e a fazerem o bem (2.12,15,20,21; 3.13-17; 4.19).
Do primeiro ao último capítulo, Pedro escreve uma série de exortações e instruções aos leitores para serem santos e evitarem o mal (1.14-16; 2.1,11; 3.8,9; 4.1-11). É seu desejo que os crentes compreendam que quando sofrem não estão passando por um exercício sem propósito, mas que estão se submetendo a um teste divino planejado com o propósito de provar sua fé (1.7). O sofrimento em si não é uma anormalidade que os crentes têm que suportar. Pelo contrário, é a experiência comum de qualquer um que vive em comunhão com Cristo (4.13).
Pedro se dirige a escravos que sofrem injustiças na mão de senhores cruéis (2.18), a esposas que vivem com maridos descrentes (3.1-6) e a todos os outros que sofrem por amor à justiça (3.13-17) e devem submeter-se ao "fogo ardente" (4.12). Ele os informa que estão no mundo para fazer a vontade de Deus. Assim, exorta a esposa crente a procurar converter seu marido por meio de seu comportamento honesto e reverência (3.2) e ganhá-lo para Cristo não por argumentos, mas pela conduta. Pedro admoesta os cristãos a mostrarem o devido respeito para com o rei, tratando-o com honra (2.17). Ainda assim, ele usa o pseudónimo Babilônia ao referir-se a Roma, a capital imperial (5.13). Pedro quer que os cristãos vivam de maneira honrada em meio aos descrentes. Nas palavras de Jesus, os cristãos devem ser "prudentes como as serpentes e símplices como as pombas" (Mt 10.16).
O tema do sofrimento, na verdade, amarra a epístola como um todo, transformando-a numa unidade literária. E verdade que a epístola de Pedro é uma mistura de teologia e admoestações para o viver cristão prático. Mesmo assim, esse tema em particular fala a uma situação real dentro das comunidades cristãs primitivas que passavam por opressão e perseguição.
Um outro assunto que Pedro discute delongadamente é a submissão. Ele desafia os leitores a serem obedientes aos superiores. Eis uma lista de referências: 1.2 ("obediência"); 1.14 ("obediente"); 1.22 ("obedecendo"); 2.8 ("desobedecendo"); 2.13 ("sujeitai-vos"); 3.1,5 ("submissos"); 3.6 ("obedeceu"); 3.20 ("desobedeceu"); 4.17 ("obedecem"); 5.5 ("submissos").

3. Liturgia
Numa epístola relativamente curta, com cinco capítulos, Pedro faz 12 citações ao Antigo Testamento: seis são da profecia de Isaías, duas de Provérbios, duas de Salmos, uma de Êxodo e uma de Levítico. 1 Pedro tem, proporcionalmente, mais citações e alusões ao Antigo Testamento do que qualquer outra epístola do Novo Testamento. Ao citar essas passagens, Pedro se baseia tanto na versão da Septuaginta como em sua memória.
Além de citar versículos das Escrituras, o apóstolo lança mão de citações de trechos de hinos e credos que eram usados na igreja cristã primitiva? Faltam-nos evidências sólidas, mas em algumas passagens esse parece ser o caso (ver, por exemplo, 1.18-21; 2.21-25; 3.18,19). Se colocarmos 3.18 e 22 numa disposição poética, vemos a forma rudimentar de uma confissão que talvez fosse recitada na igreja:

“Pois Cristo morreu pelos pecados de uma vez por todas,
o justo pelos injustos,
para levar vocês até Deus.
Ele foi morto no corpo,
mas vivificado pelo Espírito...
[Cristo], que foi para o céu e
está à direita de Deus -
com anjos, autoridades e poderes
submissos a ele”.

William Joseph Dalton conclui: "Uma simples leitura do texto... apoia fortemente a ideia de que 3.18,22 está em forma de hino, enquanto 3.19-21 é uma inserção em prosa. E mais, o versículo 22 parece dar continuidade ao versículo 18. Assim, podemos dizer que 3.18,22 é parte ou todo de um hino cristológico, enquanto 3.19-21 é um texto catequético sobre o batismo". Além disso, tendo em vista que o texto começa com a conjunção pois, os estudiosos acreditam que Pedro cita um hino cristológico primitivo. Paulo também incorpora as palavras de um credo em forma de hino em uma de suas cartas:

“Aquele que foi manifestado na carne,
foi justificado em espírito, contemplado por anjos,
pregado entre os gentios, crido no mundo,
recebido na glória” [lTm 3.16]

1 Pedro é um sermão sobre o batismo? Muita coisa já foi escrita sobre essa questão, especialmente por estudiosos que pesquisaram a estrutura básica da epístola. Certamente, a carta em si pode ser o material de um sermão que o próprio Pedro pregou. A esse material ele supostamente acrescentou saudações, uma introdução, uma bênção e uma conclusão e enviou-o na forma de uma carta para as igrejas da Ásia Menor. É claro que 1 Pedro não é um sermão, mas uma epístola apostólica.
Alguns estudiosos apresentaram uma pesquisa detalhada sobre a epístola, a fim de mostrar que a epístola de Pedro, de 1.1 a 4.6, é um sermão batismal que foi pregado a recém convertidos e que o segmento de 4.7 a 5.14 era dirigido a toda a congregação.
Outros afirmam que l Pedro é uma liturgia batismal relacionada à Páscoa.
Porém, as evidências de que a epístola é uma liturgia sobre o batismo são duvidosas e sujeitas a objeções.
Uma das objeções a essa teoria é o fato de a epístola de Pedro falar explicitamente sobre o batismo em apenas uma passagem, a saber 3.21. Consequentemente, um estudioso que faz uma lista de referências implícitas sobre o batismo em l Pedro corre o risco de ser subjetivo. Ele deve demonstrar de maneira convincente que Pe¬dro deseja transmitir um significado batismal com as expressões regenerou e crianças recém nascidas (1.3; ver também 1.23; 2.2), mas o contexto desses versículos tem a conotação de "uma regeneração espiritual sem referência a qualquer rito externo... [e] sem referência a água".
Outra objeção é o grande número de referências ao sofrimento que é suportado pelos cristãos: experiências que vão do sofrimento do escravo nas mãos de seu senhor cruel (2.18-20) até crentes que vêem-se diante de uma provação dolorosa (4.12). Na verdade, o sofrimento desses cristãos aponta não para recém convertidos, mas para cren¬tes de longa data. Assim, devemos concluir que a interpretação da epístola de Pedro como uma liturgia batismal é uma teoria que ainda não foi adequadamente provada.

4. Unidade
1 Pedro consiste de duas partes (1.1 - 4.11 e 4.12 - 5.14)? Defensores da hipótese de que a primeira parte da epístola é uma liturgia batismal vêem uma combinação de dois documentos independentes, mas alguns fatos apoiam a unidade de 1 Pedro. Em primeiro lugar, essas partes não são, de modo algum, desconexas, tendo em vista que se mostram claras as semelhanças nas escolhas das palavras e da gramática. A palavra sofrimento, por exemplo, aparece ao longo de toda a epístola e o uso do imperativo (que no grego com frequência aparece como particípio) é peculiar a ambas as partes da epístola.
Além disso, se as duas partes especializadas de l Pedro são colocadas lado a lado, apresentam muito do mesmo material. Os temas que aparecem em ambas as partes incluem o sofrimento por amor a Cristo (2.21; 4.13), sofrimento imerecido (3.17; 4.16), submissão à autoridade (2.13; 5.5), a pequena duração do sofrimento (l .6; 5.10), resistência ao mal (4.1; 5.9) e o fim de todas as coisas (4.7; 4.17).
Concluímos que l Pedro demonstra homogeneidade pelas citações do Antigo Testamento, de hinos e credo e de material de sermão. Tendo em vista os paralelos e semelhanças que aparecem ao longo da epístola, vemos a unidade de toda a epístola e não a desunião de duas partes independentes.
Por fim, se aceitamos a unidade da carta, não é necessário explicar por que um pós-escrito foi acrescentado a uma liturgia batismal e por que a liturgia foi transformada numa carta. É claro que uma rejeição da unidade da epístola levanta essas e outras questões que exigem respostas plausíveis. A unidade de l Pedro é evidente, a desunião é que deve ser provada.

G. Esboço de l Pedro
Eis um simples esboço de l Pedro que pode ser memorizado:
Introdução 1.1,2
Salvação 1.3-12
Santidade 1.13-2.3
Eleição 2.4-10
Submissão 2.11-3.12
Sofrimento 3.13-4.19
Conclusão 5.1-14

segunda-feira, 17 de março de 2008

2 - A Epístola de Tiago



Trata-se realmente de uma Epístola?
Tiago começa sua carta com um destinatário e uma saudação (1.1), usa os pronomes pessoais vós e nós ao longo de toda a sua epístola e, com frequência, apela para os leitores, chamando-os de "meus irmãos" ou "meus amados irmãos". Ele não faz uma relação de nomes dos destinatários, não oferece nenhuma informação pessoal sobre eles e deixa de mencionar qualquer detalhe sobre si mesmo. Conclui sua epístola sem uma bênção e as saudações finais.
Esta carta, portanto, não é um documento pessoal, mas uma epístola geral. As epístolas gerais no Novo Testamento (aquelas de Pedro, João e Judas e a Epístola aos Hebreus) e outras cartas - preservadas durante séculos nas areias do Egito, porém recentemente descobertas - têm essa mesma forma literária. Alguns estudiosos desejam fazer uma distinção entre epístola e carta. Afirmam que as cartas apresentam temporalidade, enquanto as epístolas demonstram permanência e universalidade. Outros, porém, consideram os termos como sendo sinónimos.

1. Um tratado
Se usarmos o termo carta ou epístola, temos que descrever o que a palavra significa. Uma carta é equivalente a um tratado ou a um sermão? Em primeiro lugar, portanto, a Epístola de Tiago seria um tratado? Estudiosos mostraram que essa epístola assemelha-se a uma diatribe. A diatribe - discurso marcado pela ironia, sátira e insultos - era comum nos círculos helenísticos. Estudiosos detectaram semelhanças entre a diatribe grega e a Epístola de Tiago quanto ao uso de perguntas retóricas, exemplos tirados da natureza e da história, espirituosidade verbal e o uso de aliteração e assonância, analogias, ditados curtos e citações.
Apesar das semelhanças serem óbvias (ver, por exemplo, a sequência de perguntas curtas e ordens no capítulo 4.1-10), isso não muda o fato de que Tiago não é um grego, e sim um judeu. Tiago é um autor inspirado que apresenta em sua epístola a revelação de Deus. Devido ao conteúdo sagrado de sua carta, o sarcasmo atroz, a ironia e os insultos - características das diatribes helenísticas - não estão presentes. Portanto, concluímos que a Epístola de Tiago não deve ser considerada um tratado no sentido de diatribe. Se a carta não é um tratado, podemos chamá-la de sermão?

2. Um sermão
O apóstolo Paulo instrui a igreja de Colossos para que lesse a carta enviada a ela e que a trocasse pela carta enviada por ele para a igreja de Laodicéia (Cl 4.16) e, em sua primeira epístola à igreja de Tessalônica, ele diz aos crentes: "Conjuro-vos, pelo Senhor, que esta epístola seja lida a todos os irmãos" (1Ts 5.27). Cartas enviadas para as igrejas e para indivíduos eram escritas "para serem lidas em voz alta nas igrejas". Presume-se que a carta de Tiago para "as doze tribos que se encontram na Dispersão" (1.1) tenha sido lida durante os cultos como um sermão de Tiago, o pastor.
A Epístola de Tiago pode ser dividida em duas partes que são quase iguais em extensão: os dois primeiros capítulos são constituídos por 53 versículos, e os três últimos por 55 versículos. Com efeito, as duas partes são dois sermões sucessivos que apresentam temas comuns. Depois da saudação, o primeiro sermão começa e termina com a questão da fé (1.3; 2.26). O segundo sermão começa com a obser¬vação de que todos aqueles que ensinam serão julgados, pois todos nós tropeçamos naquilo que dizemos (3.1-2), e termina com o conselho para converter um pecador de seu caminho errado (5.20). Em resumo, a Epístola de Tiago consiste de dois sermões.
Além disso, os sermões judaicos dos primeiros séculos de nossa era apresentam semelhanças impressionantes com a carta que Tiago escreveu para o rebanho disperso. Esses sermões incluem o uso de diálogo, o método de se dirigir ao público de uma sinagoga, fazendo uso do termo irmãos e os muitos assuntos mencionados na carta de Tiago.
Não se pode ignorar a probabilidade de que Tiago tenha se dirigido ao público de uma sinagoga (2.2) de sua época com o conteúdo do sermão que mais tarde tornou-se sua epístola. Essa epístola traz características de um sermão, mas, por causa do destinatário e da saudação no começo, não é um sermão, mas uma epístola.

Quais São as Características da Epístola?
As características desta carta apresentam-se, principalmente, sob as formas estilística e cultural.

1. Características de estilo
Em primeiro lugar, apesar da epístola estar escrita num grego de bom nível quando comparada com o que há de melhor no Novo Testamento (ou seja, com o grego da Epístola aos Hebreus), seu estilo literário mostra um traço hebraico distinto.
Além disso, a carta mostra-se repleta de imperativos. De acordo com uma contagem, eles aparecem em 44 ocasiões. O uso frequente de imperativos é uma indicação de que o escritor é uma pessoa que fala com autoridade e que exige o respeito dos membros da Igreja. Ao mesmo tempo, ele demonstra uma preocupação pastoral carinhosa por aqueles a quem se dirige.
Em terceiro lugar, o autor comunica sua mensagem de forma eficaz, usando muitos exemplos e comparações tirados da natureza e da vida humana. No primeiro capítulo, por exemplo, ele se refere ao vento e às ondas, ao sol que se levanta e ao calor ardente, à erva e sua flor, ao pai das luzes e à sombra de mudança, ao contemplar-se num espelho e ao refrear da língua. O estilo desta epístola é envolvente: ele chama a atenção e mantém o leitor interessado, pois as imagens nele contidas são naturais.
Por fim, Tiago junta frases e orações por meio da repetição de um verbo ou substantivo. Até mesmo na tradução, essa característica de estilo é evidente. Observe este exemplo tirado do capítulo 1.13-15:
“Ao ser tentado, ninguém deve dizer: "Deus está me tentan¬do". Porque Deus não pode ser tentado pelo mal e nem ele tenta ninguém; porém, cada um é tentado quando, por seu próprio desejo perverso, é atraído e seduzido. Então, depois do desejo haver concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez completamente amadurecido, dá à luz a morte”.

2. Características culturais
Tiago e seus leitores estão completamente familiarizados com os nomes que são tirados da história do Antigo Testamento: Abraão, Isaque, Raabe, Jó e Elias. A inclusão desses nomes é uma indicação preliminar de que Tiago tem como destinatários da carta leitores judaico-cristãos.
Ao longo de sua epístola, Tiago faz alusão às três partes do cânon do Antigo Testamento - a Lei, os Profetas e a literatura de Sabedoria. Ao voltar a atenção de seus leitores para a lei como um todo, ele os exorta a obedecer a ela (2.10). Além disso, no que diz respeito ao exercício da paciência diante do sofrimento, o autor lhes diz que devem tomar os profetas como exemplo (5.10) e, ao lembrá-los da per¬severança de Jó, faz alusão à literatura de Sabedoria (5.11).
Essas referências indicam que o Antigo Testamento era um livro que o autor e os leitores conheciam bem. Tiago e aqueles que receberam sua carta pertenciam às 12 tribos (1.1). Eram o povo que Deus havia escolhido para ser "herdeiro do reino" (2.5). Eram o povo que chamava Abraão de pai (2.21).
Tiago também comenta sobre as "primeiras e as últimas chuvas" (5.7). Essa é uma descrição que se encaixa no clima de Israel, e não no clima de outros países ao redor do Mar Mediterrâneo. O autor, portanto, revela que vive em Israel e que também foi de lá que se originaram seus leitores.

Quem Foram os Primeiros Leitores?
Os leitores eram judeus, tendo em vista que a carta é claramente destinada "às doze tribos que se encontram na Dispersão" (1.1). O termo doze tribos é uma referência bíblica a Israel (Êx 24.4; Mt 19.28; Lc 22.30; At 26.7; Ap 21.12) que deve ser entendida de forma figurativa, e não literalmente. Tiago se dirige a representantes dessas 12 tribos que, pela obra de Cristo, são agora o novo Israel.
De fato, Tiago chama seus leitores de irmãos que são crentes em "nosso Senhor Jesus Cristo" (2.1). São cristãos judeus que vivem "na Dispersão" (1.1), mas que ainda assim sabem que são o povo de Deus. Em sua epístola, Tiago não oferece nenhuma evidência de que está se dirigindo a cristãos gentios. Os leitores dessa epístola são exclusivamente judeus, com exceção dos opressores ricos reprovados por Tiago (5.1-6).
Os destinatários da epístola são judeus: eles se encontram para adorar numa "reunião" - uma tradução da palavra sinagoga (2.2); são chamados de "infiéis" (4.4) - o original grego tem o termo mulheres adúlteras (4.4), que é, evidentemente, uma figura do Antigo Tes¬tamento que mostra o contrato matrimonial que Deus (como marido) tem com Israel (sua esposa). Eles compreendem o termo Sabaoth, que a Bíblia Revista e Atualizada traduz como "Senhor dos Exércitos" (5.4), e chamam os presbíteros da igreja para que visitem e orem com os doentes (5.14). A Igreja, porém, não tem bispos. A expressão bispo (ver At 20.28; Fp 1.1; l Tm 3.2; Tt 1.7; IPe 2.25) tem sua origem na parte da Igreja cristã cuja membresia é de origem gentia. O termo presbítero, por outro lado, lembra os líderes em Israel que eram chamados de presbíteros e, portanto, reflete a influência judaica.
Esses judeus são, portanto, cristãos. O escritor se apresenta como um "servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo" (1.1). Além de se dirigir aos cristãos que crêem em Jesus Cristo (2.1), ele escreve que "segundo seu querer ele nos [o autor e os leitores] gerou pela palavra da verdade" (1.18). Os leitores pertencem a Jesus, cujo bom nome é blasfemado (2.7).
Esses cristãos judeus foram dispersos entre as nações. Apesar da expressão Dispersão aparecer apenas em João 7.35, Tiago 1.1 e 1 Pedro l. l, ela encontra um paralelo verbal dentro da narrativa escrita da perseguição da Igreja em Jerusalém. Depois da morte de Este¬vão, a igreja de Jerusalém foi dispersa pela Judéia, Samaria (At 8.1) e até mesmo em lugares distantes como a Fenícia, Chipre e Antioquia (At 11.19). Por meio de Atos, portanto, sabemos que os cristãos dis¬persos eram judeus que haviam sido expulsos de Jerusalém.
Se tomarmos como pressuposto que Tiago escreveu sua epístola para os cristãos judeus que foram perseguidos depois da morte de Estevão, então, conclui-se que essa epístola é do início do século I. Além disso, essas pessoas eram cristãos judeus cuja língua-mãe era o grego e que encontraram refúgio em países de fala grega ao norte de Israel: Fenícia, Chipre e Síria.
Tiago escreveu uma carta pastoral para esses crentes dispersos que, antes da perseguição, pertenciam à igreja de Jerusalém. Sabia que estavam vivendo em pobreza, enquanto eram empregados por abastados donos de terras que os exploravam. Alguns deles eram comerciantes, mas todos passavam por dificuldades. Tiago ministrou às suas necessidades ao escrever-lhes uma carta pastoral.

Quem Escreveu esta Epístola?
A saudação introdutória informa ao leitor que Tiago é um "servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo" (1.1). Essa saudação, em si, oferece poucas informações sobre a identidade do autor. Quem é ele? O que o Novo Testamento diz sobre Tiago?

1. Evidências do Novo Testamento
O Nome
O Novo Testamento menciona vários homens chamados Tiago. São eles o filho de Zebedeu (Mt 10.2 e paralelos; At 1.13; 12.2), o filho de Alfeu (Mt 10.3 e paralelos; At 1.13), Tiago, o menor (Mc 15.40), o pai de Judas (não o Iscariotes [Lc 6.16; At 1.13]), o irmão de Judas (Jd 1) e o meio-irmão de Jesus, que se tornou o líder da igreja de Jerusalém (Mt 13.55; Mc 6.3; At 12.17; 15.13; 21.18; ICo 15.7; Gl 1.19; 2.9,12).
Se o irmão de Judas (Jd 1) e Tiago, o meio-irmão de Jesus, são a mesma pessoa, o número cai para cinco homens com esse nome.

a. "Tiago, filho de Zebedeu". Tiago e seu irmão João receberam o nome de Boanerges, que significa "filhos do trovão" (Mc 3.17). Além da lista de apóstolos nos evangelhos e em Atos, seu nome aparece em Atos 12.2, onde Lucas informa ao leitor que o rei Herodes Agripa I havia mandado "prender alguns da igreja para os maltratar, fazendo passar ao fio da espada a Tiago, irmão de João". Isso ocorreu no ano 44 d.C., durante a Festa dos Pães Asmos. Se Tiago, filho de Zebedeu, tivesse escrito a Epístola de Tiago, seria de se esperar mais informações internas e externas. Ao invés de chamar-se de "servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo" ele teria usado o termo apóstolo de Jesus Cristo, e a igreja primitiva teria recebido e guardado com cuidado a epístola como um escrito apostólico.

b. "Tiago, filho de Alfeu". Conhecemos esse apóstolo apenas por meio das listas de apóstolos dos evangelhos e Atos. O Novo Testamento não diz nada sobre a vida e as obras dessa pessoa. Se esse apóstolo tivesse escrito a epístola, ele teria oferecido mais identificações. Além disso, a igreja teria mantido viva essa memória se essa epístola tivesse sido escrita por um apóstolo.

c. "Tiago, o menor". De acordo com o Evangelho de Marcos (15.40), Tiago, seu irmão José e sua irmã Salomé eram filhos de Maria. Tiago é identificado como "o menor" - uma referência à sua idade ou estatura. Nada sabemos sobre a vida de Tiago, o menor. Supõe-se que sua mãe fosse a esposa de Clopas (Jo 19.25).

d. "Tiago, pai de Judas". Não se sabe nada sobre essa determinada pessoa, a não ser que ele era pai do apóstolo Judas (não o Iscariotes).

e. "Tiago, [meio] irmão do Senhor". Os escritores dos evangelhos falam dele como sendo um dos filhos de Maria, a mãe de Jesus (Mt 13.55; Mc 6.3). Durante o ministério de Jesus aqui na terra, esse Tiago e seus irmãos não criam em Jesus (Jo 7.5). Tiago tornou-se um crente quando Jesus apareceu para ele depois de sua ressurreição (lCo 15.7). Depois da ascensão de Jesus, ele estava presente com seus irmãos e os apóstolos no lugar chamado de cenáculo (At 1.14). Ele assumiu a liderança da igreja de Jerusalém depois que Pedro foi libertado da prisão (At 12.17), falou com autoridade durante a assembleia em Jerusalém (At 15.13), foi reconhecido como o líder da igreja (Gl 1.19; 2.9,12) e encontrou-se com Paulo para ouvir seu relato sobre as missões no mundo gentio (At 21.18). A tradição ensina que foi esse líder estimado e influente que escreveu a epístola.

As objeções à tradição de que foi Tiago, irmão de Jesus, quem escreveu a epístola apresentam-se na forma dos seguintes argumentos:
a. Um galileu cuja língua-mãe era o aramaico não poderia ter redigido uma carta em grego culto. Essa objeção, porém, não é muito forte, tendo em vista a profunda influência grega na Galiléia. Não se sabe da habilidade linguística de Tiago, mas não é remota a possibilidade de que ele fosse bilíngue. Deve-se levar em conta a questão da educação, uma vez que a Galiléia era uma região com muitas cidades gregas e população não-judaica e, por haver amplas evidências do uso de grego por judeus de toda a Palestina, não há razão para supor que Tiago não pudesse falar grego fluentemente. Nem mesmo a questão da educação é convincente: considere, por exemplo, que um sapateiro sem instrução chamado John Bunyan escreveu O Peregrino, que é considerado uma obra clássica. A objeção de que Tiago não poderia haver redigido a carta parece não ter fundamento.
b. Tiago chama-se de servo, e não de irmão de Jesus. Se ele era líder da igreja de Jerusalém, poderia ter indicado essa posição na saudação introdutória. Porém, em suas cartas, os outros escritores de epístolas do Novo Testamento, com frequência, omitiam referências a si mesmos e ao seu cargo. Além disso, Tiago considerava seu relacionamento com Jesus não fisicamente, como seu irmão, mas espiritualmente, como seu servo. Ao longo da epístola, a autoridade da po¬sição do autor dentro da igreja é inconfundível e inegável. Conhecido pelos leitores de seu documento, Tiago não se sente compelido a se identificar como líder da igreja de Jerusalém.

1. Linguagem
Se partirmos do pressuposto de que Tiago, líder da igreja de Jerusalém, é o autor da epístola, devemos examinar seu discurso durante a assembleia realizada em Jerusalém e a carta que ele redigiu nessa ocasião (At 15.13-29). Por exemplo, ele chama Pedro de Simão (em grego, At 15.14), um nome que só aparece novamente em 2 Pedro 1.1. A partir disso, imaginamos que as verdadeiras palavras daquele que está falando são registradas em sua forma original ou numa tradução; torna-se, portanto, interessante saber se há qualquer semelhança entre a linguagem da epístola e aquela do discurso que se diz ter sido realizado por Tiago e da circular [carta] contendo o decreto, que provavelmente foi elaborado por ele.
Além do mais, encontramos semelhanças quando comparamos a escolha de palavras e a estrutura das frases (conforme relatado por Lucas em Atos) com a Epístola de Tiago. Tiago começa seu discurso com o tratamento familiar irmãos, uma expressão que usa com frequência em sua epístola. Observe as seguintes palavras e frases que até mesmo depois de traduzidas mostram-se parecidas:
"Saudações" (At 15.23; Tg 1.1).
"Irmãos, atentai nas minhas palavras" (At 15.13) e "Ouvi, meus amados irmãos" (Tg 2.5).
"Para que os demais homens busquem o Senhor, e todos os gentios sobre os quais tem sido invocado o seu nome" (At 15.17) e "Não são eles que estão difamando o nome sublime daquele a quem vocês pertencem?" (Tg 2.7).
Apesar de não podermos estar absolutamente certos sobre a autoria da epístola, as evidências internas parecem apontar para Tiago, o meio-irmão de Jesus.

2. Evidência externa
Eusébio, historiador da igreja no século IV, cita Hergésipo quando relata que Tiago "costumava entrar sozinho no templo e podia ser encontrado ajoelhado orando por perdão para o povo, de modo que seus joelhos tornaram-se ásperos como os de um camelo, devido à sua cons¬tante adoração a Deus". Como líder da igreja de Jerusalém, Tiago havia conquistado o respeito tanto dos cristãos como dos judeus.
Ainda assim, esse homem devoto, conhecido como Tiago, o Justo, teve uma morte violenta, que é descrita pelo historiador judeu Josefo. Depois que o governador Festo (At 24.27-26.32) faleceu, em 62 d.C., o imperador Nero enviou Albino à Judéia como seu sucessor. Mas, antes que Albino chegasse, um sumo sacerdote chamado Anano, que era jovem e inexperiente, convocou os juizes do Sinédrio. Acusou Tiago, o irmão de Jesus, e outros, de quebrar a lei. Tiago recebeu a sentença de morte por apedrejamento. Tiago, porém, encontrou a morte nas mãos dos sacerdotes, que o lançaram do telhado do templo. Ele sobreviveu à queda, mas os sacerdotes começaram a apedrejá-lo até que um lavador de roupas o espancou até à morte com um bastão.

Qual é a Mensagem Teológica de Tiago?
A Epístola de Tiago parece ser uma coletânea de ditados e pensamentos colocados juntos sem grande formalidade. Difere das epístoIas escritas por Paulo, nas quais ele primeiro desenvolve uma questão doutrinária - como, por exemplo, a cristologia, em Colossenses - e depois conclui com uma seção dedicada à aplicação prática. Tiago, pelo contrário, apresenta uma série de exortações e diversas admoestações que refletem uma ênfase ética, e não doutrinária. Apesar dessas exortações estarem informalmente ligadas, Tiago mostra progresso e desenvolvimento em sua apresentação.
É típico de Tiago introduzir um assunto de forma resumida e sobre o qual ele argumenta mais tarde. Alguns desses assuntos incluem a fé, as provações, a sabedoria (1.2-5), o controle da língua e da ira e a submissão a Deus (1.19,20). Ele retorna a alguns tópicos para discuti-los de maneira mais completa: as provações e tentações (1.12-15); a obediência à lei pela fé (1.22-2.26); o controle sobre a língua (3.1-12); a sabedoria terrena e a celestial; o viver em harmonia com a vontade de Deus (4) e o exercício da paciência por meio da oração (5).
Pelo fato de Tiago muitas vezes voltar a discutir assuntos mencionados anteriormente, não se pode separar sua epístola pela divisão de tópicos. Em termos de proporção, tratar cada tópico separadamente tornaria essa introdução demasiadamente longa.
Tiago parece dar a impressão de que está familiarizado com o evangelho oral de Jesus, mas não com os livros do Novo Testamento. Não é possível demonstrar uma dependência literária de nosso Evangelho de Mateus (e nem mesmo em Lucas ou João). Se estivesse familiarizado com os relatos escritos do evangelho e com as epístolas, Tiago teria um enfoque mais teológico do que ético em sua epístola. É verdade que ele apresenta uma teologia, mas ela fica implícita, e não explícita. Tiago se baseia na pregação de Jesus, discute a questão da fé e das obras de maneira independente em relação aos ensinamentos de Paulo e escreve sobre a submissão a Deus de forma mais simples do que aquela apresentada por Pedro em suas epístolas.
Em sua epístola, Tiago se harmoniza com a tônica dos ensinamentos de Jesus registrados nos evangelhos. É notável a semelhança existente entre o Sermão do Monte (Mt 5.3-7.27; Lc 6.20-49) e versículos, orações, frases e palavras contidas na carta de Tiago. Eis alguns versículos que ilustram essa afirmação:

Mateus 5.7 — Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
Tiago 2.13 — Porque o juízo será sem misericórdia sobre aquele que não fez misericórdia;
Mateus 5.19 — Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus;
Tiago 2.10 — Porque qualquer que guardar toda a lei, e tropeçar em um só ponto, tornou-se culpado de todos.
Mateus 6.19 — Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem...
Tiago 5.2-3 — As vossas riquezas estão corruptas, e as vossas roupagens, comidas de traça; 3 o vosso ouro e a vossa prata foram gastos de ferrugens, e a sua ferrugem há de ser por testemunho contra vós mesmos e há de devorar, como fogo, as vossas carnes. Tesouros acumulastes nos últimos dias.

Do ponto de vista literário, os estudiosos geralmente reconhecem que Tiago não está citando, mas sim fazendo alusão aos evangelhos sinóticos. A escolha das palavras, a sintaxe e a estrutura das frases são diferente, de modo que se pode afirmar com segurança que Tiago se baseia na palavra falada e passa adiante alusões ao evangelho escrito. Tendo por base essas numerosas alusões ao ensinamento de Jesus, podemos até dizer que Tiago tinha ouvido Jesus pregar em muitas ocasiões e, portanto, estava familiarizado com seus ensinamentos. Juntamente com "testemunhas oculares e ministros da palavra" (Lc 1.2), Tiago participou no recebimento e na transmissão da mensagem de Jesus.
Se podemos detectar ensinamentos de primeira mão de Jesus na Epístola de Tiago, seria possível formular uma Cristologia? A resposta é afirmativa.

1. Cristologia
A Epístola de Tiago não faz referência à vida, sofrimento, morte e ressurreição de Jesus. Apesar da doutrina da ressurreição ser o substrato dos ensinamentos apostólicos e o tema básico do livro de Atos, em sua epístola, Tiago não dá nenhuma atenção a esse acontecimento redentor. Ele está interessado em proclamar o evangelho de Cristo não tanto em termos de sua pessoa, mas em termos práticos e com aplicações éticas de seus ensinamentos.
A epístola contém apenas duas referências diretas a Jesus Cristo. A primeira encontra-se no remetente: "Tiago, um servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo" (1.1). A segunda encontra-se na discussão da fé, onde Tiago fala sobre a fé dos leitores em "nosso Senhor Jesus Cristo" (2.1).
Além de incluir esses testemunhos cristológicos diretos, Tiago se refere indiretamente a Jesus ao usar o termo Senhor 11 vezes. Porém, apresso-me em mostrar que, no caso de algumas dessas referências, esse termo é equivalente ao nome de Deus (3.9; 5.4,10,11).
Quando Tiago chama Jesus de "Senhor", ele deseja que seus leitores pensem na ascensão de Cristo. O nome de Deus e de Jesus são paralelos entre si no remetente (1.1); a intenção é enfatizar que o Senhor exaltado é divino. Além do mais, Tiago atribui atos divinos a Jesus: o perdão de pecados (5.15), a cura dos enfermos (5.14,15) e sua posição como Juiz que está às portas (5.9).
Tiago faz, ainda, uma outra alusão a Jesus. Ele diz aos leitores que os ricos são aqueles que "difamam o nome sublime daquele a quem vocês pertencem" (2.7). Esse bom nome pertence a "nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória" (2.1). Observe que Tiago descreve o Senhor como sendo "o Senhor da glória" (do grego). Esse termo faz o leitor lembrar-se da glória de Deus que encheu o tabernáculo no deserto (ver Êx 40.35) e assemelha-se à descrição de Jesus dada por João no prólogo de seu evangelho. João afirma que: "O Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos sua glória, glória do unigénito do Pai" (Jo 1. 14). A expressão glória indica que Jesus havia cumprido as promessas do Antigo Testamento de que o próprio Deus viria habitar no meio de seu povo. Em Jesus Cristo, Deus revelou sua glória.
E, finalmente, a igreja primitiva entendia a frase nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória, como significando que Jesus havia ascendido aos céus, onde reina com Deus em glória celestial.
Nessa epístola, Tiago revela sua teologia não de maneira direta, mas indiretamente e, portanto, parece mostrar um estágio primitivo do desenvolvimento doutrinário da igreja cristã. Se partirmos do pressu¬posto de que na primeira parte do século l a igreja ainda não havia desenvolvido plenamente a doutrina de Cristo, podemos concluir que a carta, aparentemente, reflete um período inicial na história da igreja.

2. Oração
Tiago que, de acordo com relatos, gastava muito tempo em oração, familiariza seus leitores com esse assunto em pelo menos três partes de sua epístola. Na parte introdutória de sua carta, ele os exorta a pedir sabedoria a Deus (1.5-7). Quando ele os repreende por seu pecado de discutir e brigar, mostra que eles não receberam nada de Deus, porque pediram bens que desejavam usar para seus prazeres pessoais (4.2,3). E se há enfermidade, ou se foi cometido algum pecado, Tiago aconselha seus leitores a fazerem orações para que o enfer¬mo seja curado e o pecado seja perdoado (5.14-16).
Nessas três passagens, Tiago instrui seus leitores dizendo que a oração autêntica deve basear-se na confiança e na fé em Deus. Deus só responde às orações quando o crente pede com fé. Em resposta ao pedido do crente, Deus concederá generosamente a dádiva da sabedoria, irá ao encontro de suas necessidades materiais e dará a cura aos enfermos. A oração daquele que é justo diante de Deus "é poderosa e eficaz" (5.16). O exemplo dado é o de Elias, cujas orações influenciaram o curso da natureza (5.17,18).
Indiretamente, Tiago ainda toca no assunto da oração em outras passagens. Oração também é louvor. Tiago escreve que "com ela bendizemos ao Senhor e Pai" (3.9). A oração é aproximar-se de Deus (4.8) e humilhar-se perante o Senhor (4.10).
A semelhança entre as palavras de Jesus e a Epístola de Tiago sobre a questão da oração é inquestionável. Jesus ensina que a oração baseada na fé é capaz de mover montanhas (Mt 17.20; 21.21; Lc 17.6). Ele diz: "E tudo quanto pedirdes em oração, crendo, recebereis" (Mt 21.22). Outros escritores do Novo Testamento, entre eles o autor de Hebreus, enfatizam essa mesma verdade. Paulo se expressa de modo um tanto direto: "Tudo o que não provém de fé é pecado" (Rm 14.23).

3. A Fé
Um dos primeiros assuntos que Tiago apresenta em sua epístola é a fé: "Vocês sabem que a provação da sua fé desenvolve perseverança" (1.3). E quando uma pessoa se aproxima de Deus em oração, deve pedir "e não duvidar" (1.6).
Tiago desenvolve a questão da fé especialmente no segundo capítulo de sua carta. No original grego, esse substantivo aparece predominantemente no capítulo 2, ou seja, das 16 vezes em que é usado em toda a epístola, 13 delas encontram-se no segundo capítulo. Além disso, nesse capítulo ocorre o uso do verbo crer em três ocasiões (2.19 [2 vezes], 23).
Os destinatários da carta são chamados de crentes "em nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória" (2.1). A pessoa que é materialmente pobre é espiritualmente rica de fé (2.5) e herdeira do reino de Deus.
Na parte que se refere à fé e às obras, Tiago afirma que "a fé por si só, se não for acompanhada de ação, é morta" (2.17,26), pois a fé que está morta não é fé. Assim, ele ilustra seu ensinamento com uma refe¬ência à narrativa histórica da oferta de Isaque no monte Moriá. Ele prova que as obras de Abraão são resultantes da fé ativa do patriarca.

4. A Lei
Para Tiago, a lei de Deus que dá liberdade ao crente (1.25; 2.12), é resumida como "a lei régia" ("amarás o teu próximo como a ti mesmo", 2.8) e deve ser obedecida (4.11). Peter H. Davids conclui que "em cada uma dessas passagens, a validade da lei não é discutida, mas simplesmente pressuposta".
Há paralelos reconhecíveis entre a Epístola de Tiago e os ensinamentos de Jesus acerca da lei. Tiago declara que a pessoa que faz o que é pedido pela lei, ao observá-la atentamente, "será abençoado no que realiza" (1.25). Jesus observa que "nem todo o que me diz: 'Senhor! Senhor!' entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus" (Mt 7.21). A pessoa que coloca em prática as palavras de Jesus é sábia (Mt 7.25; e ver também Lc 6.47). Tiago retrata a segunda parte do resumo da lei - "Amarás o teu próximo como a ti mesmo" - como sendo régia (2.8). Ao ser perguntado por mestres da lei sobre qual é o maior mandamento da lei, Jesus ensina a forma resumida: '"Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento'. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: 'Amarás o teu próximo como a ti mesmo'" (Mt 22.37-39).
Tiago instrui seus leitores a não criticar ou julgar um irmão, pois isso é o mesmo que criticar e julgar a lei: "Quando vocês julgam a lei, não a estão observando, mas sim servindo de juizes dela" (4.11). Essas palavras são um eco e uma forma expandida daquelas que foram proferidas por Jesus: "Não julgueis, para que não sejais julgados. Pois com o critério que julgardes, sereis julgados" (Mt 7.1,2).
No tocante à lei, a Epístola de Tiago está repleta do Espírito de Cristo. É verdade que Tiago não apresenta uma doutrina plenamente desenvolvida da lei e da salvação, mas o ensinamento de que Deus "dá graça aos humildes" (4.6). Fica a cargo de Paulo apresentar à igreja a doutrina da justificação pela fé, e não pelas obras.

5. Fé e obras
Uma comparação entre Romanos 4 e Tiago 2 revela uma aparente semelhança na escolha das palavras fé e obras e na citação de Génesis 15.6: "Abraão creu em Deus, e isto lhe foi imputado para justiça" (Rm 4.3; Tg 2.23). Qual é a relação entre a apresentação de Paulo da fé e das obras em Romanos e a de Tiago em sua epístola?
Alguns comentaristas afirmam que Tiago escreveu sua epístola para criticar os ensinamentos de Paulo sobre fé e obras. Dizem que Paulo foi mal-entendido pela igreja, pois separou os conceitos de fé e de obras. Tiago via um perigo nos ensinamentos apresentados por Paulo, a saber, da fé sem obras. Assim, pelo fato de alguns cristãos terem interpretado incorretamente a frase “sem obras”, Tiago escreveu sua carta para reforçar o ensinamento de que a fé resulta em obras.
Na opinião de outros estudiosos, Tiago escreveu sua epístola antes de Paulo começar sua carreira como escritor, ou seja, depois que a Epístola de Tiago começou a circular na igreja primitiva, Paulo escreveu sua carta aos romanos para apresentar uma melhor compreensão do significado da fé sem obras.
Tanto Tiago quanto Paulo desenvolvem o tópico de fé e de obras, cada um de sua própria perspectiva e cada um com seu propósito.
Tiago usa a palavra fé de modo subjetivo, no sentido de confiança e segurança no Senhor. Essa fé ativa dá ao crente perseverança, certeza e salvação (1.3; 2.14; 5.15). A fé é o envolvimento ativo do crente com a igreja e o mundo. Pela fé, ele recebe sabedoria (1.5), justiça (2.23) e cura (5.15).
Paulo, por outro lado, com frequência, fala da fé de modo objetivo. Fé é o instrumento pelo qual o crente é justificado diante de Deus (Rm 3.25,28,30; 5. 1; Gl 2.16; Fp 3.9). A fé é o meio pelo qual o crente se apropria dos méritos de Cristo. Por causa desses méritos, o homem é justificado diante de Deus. A justificação, portanto, vem como uma dádiva de Deus para o homem - um dom que ele toma para si pela fé. A justificação é a declaração de Deus de que ele restaurou o crente pela fé, colocando-o num relacionamento correto consigo mesmo.
Em sua discussão sobre fé e obras, Tiago parece escrever de maneira independente da carta de Paulo aos romanos. Tiago aborda o assunto de um ponto de vista mais prático do que teológico. Com efeito, sua abordagem é simples, direta e consequente.
A discussão de Paulo representa um estágio avançado do ensinamento que relaciona a fé com as obras. Pelo fato da abordagem de Tiago diferir bastante da de Paulo, concluímos que ele escreveu sua epístola independente do ensinamento de Paulo e, talvez, até antes da redação de Romanos.

6. Provações e submissão
Dois tópicos tratados tanto por Pedro quanto por Tiago são as provações e a submissão. As semelhanças geram algumas perguntas. Será que Pedro baseou-se na Epístola de Tiago para escrever sobre isso em sua própria epístola? Será que Tiago lançou mão de 1 Pedro? Ou teriam ambos os autores tirado seu material de uma fonte em comum?
Antes de procurarmos responder a essas perguntas, devemos levar em consideração pelo menos três fatos. Primeiro, com respeito às semelhanças e paralelismos, a Epístola de Tiago é breve e a de 1 Pedro é mais elaborada. A regra hermenêutica "o texto mais curto é provavelmente o mais próximo do original" tem seu mérito, pois um autor que toma seu material emprestado de outro tem a tendência a estender sua apresentação. Além disso, Tiago escreve sua carta, exclusivamente, para leitores judeus cristãos; Pedro escreve para gentios cristãos (ver IPe 1.18; 2.10,12; 4.3). E, finalmente, Tiago e Pedro compartilham de uma herança cultural, um treinamento e um propósito comuns. Sem dúvida, sua íntima comunhão em Jerusalém contribuiu para a interdependência na escrita de suas respectivas epístolas.
Há muitas semelhanças entre a Epístola de Tiago e a Primeira Epístola de Pedro. Ambos os autores mencionam e citam duas passagens idênticas do Antigo Testamento. A primeira é Isaías 40.6-8:

“Toda a carne é erva, e toda a sua glória como flor da erva. Seca-se a erva, e caem as flores, soprando nelas o hálito do Senhor... seca-se a erva e cai a sua flor, mas a palavra do nosso Deus permanece eternamente".

Tiago faz alusão a essa passagem (1.10,11) e Pedro cita partes dela com exatidão (1Pe 1.24). A segunda citação é de Provérbios 10.12: "O amor cobre todas as transgressões". Tanto Tiago quanto Pedro citam esse versículo (Tg 5.20; 1Pe 4.8).
Além disso, devemos observar alguns paralelos nas duas epístolas para ver como cada escritor desenvolve um determinado tópico. A partir dessa visão dos paralelos, podemos determinar quem faz um relato mais completo do tópico. Eis alguns versículos paralelos que ilustram os temas das provações e da submissão.

Tiago 1.2
"Considerem uma alegria absolu¬ta, meus irmãos, sempre que você enfrentarem tribulações de mui¬tos tipos".
1 Pedro 1.6
"Nisso exultais, embora, no pre¬sente, por breve tempo, se neces¬sário, sejais contristados por vári¬as provações".

Tiago indica que o homem que persevera debaixo de provações receberá a coroa da vida (1.12). Pedro exorta seus leitores a não se surpreenderem quando tiverem de suportar sofrimento doloroso (4.12) e para não se envergonharem quando sofrerem como cristãos (4.16).

Tiago 4.6,7,10
"É por isso que as Escrituras dizem: Deus se opõe ao soberbo, mas dá graça ao humilde. Submetam-se, portanto, a Deus... Humilhem-se diante do Senhor e ele os levantará".
1 Pedro 5.5,6
"Rogo igualmente aos jovens: sede submissos aos que são mais velhos... porque Deus resiste aos soberbos, contudo aos humildes concede a sua graça. Humilhai-vos, portanto, sob a poderosa mão de Deus, para que ele, em tempo oportuno, vos exalte".

Enquanto Tiago exorta dizendo: "Resistam ao diabo e ele fugirá de vocês" (4.7), Pedro expande sua exortação e sua descrição do diabo. Ele admoesta os leitores a serem "sóbrios e vigilantes". Explica sua admoestação dizendo: "O diabo, vosso adversário, anda em derredor como leão que ruge procurando alguém para devorar". E, finalmente, diz ao crente: "Resisti-lhe [ao diabo] firmes na fé" (IPe 5.8,9).
Esses dois exemplos ilustram o caráter conciso do estilo de Tiago e a forma expandida de Pedro. Apesar dessa observação ser, por si só, como um grão de areia no deserto, parece favorecer a teoria de que a Epístola de Tiago foi escrita antes da Primeira Epístola de Pedro. É mais provável que ela seja de uma data mais antiga, e não de um tempo mais recente.

Quando e Onde a Epístola Foi Escrita?
1. A Data
Tiago escreveu sua epístola depois de se tornar líder da igreja de Jerusalém, no ano de 44 d.C., e antes de morrer como mártir, em 62 d.C.
Os dois extremos no que diz respeito às datas usadas para determinar quando a Epístola de Tiago foi escrita podem ser verificados. Começaremos com a possível data mais antiga na qual a epístola poderia ter sido escrita. Os cristãos judeus que foram expulsos de Jerusalém por causa da perseguição resultante da morte de Estevão dis¬persaram-se (At 8.1). Eles "se espalharam até a Fenícia, Chipre e Antioquia" (At 11.19). Isso provavelmente ocorreu durante o início da quinta década. Também foi nesses anos que Tiago alcançou proeminência na igreja de Jerusalém. Quando Pedro foi libertado da prisão, em 44 d.C. (ano em que Herodes Agripa I faleceu [At 12.23]), Tiago tomou o lugar de Pedro como líder da igreja.
Em sua carta, Tiago se dirige "às doze tribos espalhadas entre as nações" (1.1). Ele cumpre seu papel de pastor até mesmo em relação a membros antigos que naquele momento estavam dispersos. Escreve sua carta para todos os cristãos na Dispersão pois, a seu ver, naquele período da história da igreja não havia cristãos gentios. A possível data mais recente para a redação da Epístola de Tiago é o ano 62 d.C., ano da morte de Tiago. Essa data pode ser verificada, pois Festo havia falecido e seu sucessor, Albino, estava a caminho da Judéia para assumir seu cargo de governador.
A epístola em si não tem nenhuma referência de tempo, ou de circunstâncias específicas que possa ajudar o leitor a determinar uma data. Se revisarmos o conteúdo da Epístola de Tiago e analisarmos as referências indiretas à cultura e às condições da época na qual o autor escreveu, seremos capazes de determinar a data aproximada em que a carta foi escrita.
Tiago não indica uma divisão entre cristãos judeus e judeus, o que é um tanto pronunciado nos evangelhos e nas epístolas. Mateus, por exemplo, registra as palavras de Jesus admoestando o crente a não ser como os hipócritas que "gostam de orar em pé nas sinagogas" (6.5). João, em seu evangelho, refere-se repetidamente à oposição como sendo "os judeus", mesmo que o próprio Jesus e seus discípulos fossem judeus. Paulo também enfrentou resistência organizada à mensagem de Cristo mais pelos judeus do que pelos gentios.
A Epístola de Tiago, porém, reflete um tempo de relativa tranquilidade dentro da comunidade judaica na quarta e quinta décadas do século I. Os destinatários da epístola frequentam cultos em sua sinagoga local (2.2; ver no grego). Certamente esses leitores estavam passando por dificuldades financeiras e perseguições de pessoas que estavam blasfemando o bom nome de Jesus (2.7). Eles eram oprimidos não por serem judeus, mas por serem pobres.
Enquanto Paulo e Pedro fazem em suas epístolas uma distinção entre cristãos judeus e cristãos gentios, Tiago se dirige apenas aos cristãos pertencentes às 12 tribos (1.1) e que chamavam Abraão de pai (2.21). Pelo fato de nada na Epístola de Tiago indicar a controvérsia entre judeus e gentios que levou à convocação da reunião geral dos apóstolos e presbíteros em Jerusalém (At 15), a carta provavelmente foi escrita antes dessa reunião do concílio. Os estudiosos acreditam que o concílio reuniu-se no ano de 49 d.C.
Além disso, a epístola reflete um tempo no qual a igreja parece estar em seus estágios iniciais de desenvolvimento. É verdade que o termo presbíteros aparece relacionado à cura dos enfermos (5.14), mas Tiago não observa, ou comenta, sobre o ministério de liderança e ensino dos presbíteros. Apesar de mencionar mestres quando fala do refrear da língua (3.1), ele não os associa ao ministério na igreja. Não faz alusão, ainda, ao ministério dos diáconos de cuidado dos pobres. Os sacramentos da Ceia do Senhor e do batismo não são discutidos. Apesar desse argumento ser resultante do silêncio, a reunião de evidências aponta para uma data na metade da quinta década. Podemos considerar, cautelosamente, que se trata de uma data que fica entre o momento em que Tiago sucedeu a Pedro como líder da igreja de Jerusalém e a reunião do concílio naquela mesma cidade.

2. O Lugar
O autor não oferece nenhuma informação sobre seu domicílio. Porém, refere-se a condições climáticas próprias de Israel. Seu comentário sobre como o lavrador aguarda com paciência as "primeiras e últimas chuvas" (5.7) encaixa-se com a região da Palestina. Países ao sul ou leste de Israel não têm esse ciclo repetitivo de chuvas de outono e primavera, que é típico de Israel. Tiago também observa o "ardente calor" (1.11) do sol que é prevalecente em sua terra natal e coloca o leitor a par dos frutos da terra: figos e azeitonas (3.12).

Qual é a História da Epístola?
Durante mais de um século e meio depois que foi escrita, a Epístola de Tiago não circulou e nem foi amplamente divulgada. Talvez por ter sido endereçada a um grupo limitado de cristãos judeus, a carta tenha continuado desconhecida na igreja cristã gentia. O fato de Tiago não ser um apóstolo resultou em negligência por parte da igreja com respeito à sua carta. A igreja aplicou a regra de que se um livro não era apostólico não podia ser canônico.
O Cânon Muratoriano, que é supostamente do ano 175 d.C., não inclui a Epístola de Tiago. Escritores do século II fazem alusões vagas a essa carta. Diz-se que Clemente de Alexandria fez um comentário sobre a epístola por volta de 220 d.C., mesmo não havendo quaisquer citações dessa obra naquilo que restou de seus escritos. Orígenes cita a Epístola de Tiago em seu comentário do Evangelho de João (Jo 19.6). Ele se refere à epístola como sendo Escritura e menciona o nome de Tiago.
Cem anos depois, o historiador Eusébio relata que a Epístola de Tiago era usada publicamente nas igrejas. Naquela época, alguns a consideravam um documento espúrio, e o próprio historiador a coloca na lista dos livros controversos. Ainda assim, Eusébio se refere a essa epístola como sendo parte das Escrituras, atribuindo-a ao "santo apóstolo", o qual ele chama repetidamente de irmão do Senhor. Depois de descrever o martírio de Tiago, ele diz:

“Essa é a história de Tiago. Diz-se que sua [epístola] é a primeira das epístolas chamadas de católicas. Deve-se observar que sua autenticidade é negada, tendo em vista que poucos dos antigos a citam, como também é o caso da Epístola de Judas, que é, em si, uma das sete chamadas católicas; ainda assim, sabemos que essas cartas eram usadas publicamente junto com as outras na maioria das igrejas”.

O Concílio de Cartago, em 397 d.C., reconheceu oficialmente a Epístola de Tiago como sendo canônica. No ano de 412 d.C., a Igreja da Síria a inclui juntamente com 1 Pedro e 1 João na versão autorizada conhecida como Peshitta Siríaca. Exceto pela igreja síria, o Oriente passou a considerar a epístola como sendo canônica antes do Oci¬dente. Líderes influentes, incluindo Jerônimo, foram de grande importância para familiarizar a igreja do Ocidente com a Epístola de Tiago.
Durante a época da Reforma, Erasmo expressou dúvidas de que Tiago, irmão de Jesus, tivesse escrito a epístola. Para ele, por causa da descendência judia de Tiago, este não poderia ter escrito num grego de tão alto nível como o que aparece na epístola. Martinho Lutero também acrescentou suas reservas ao observar que a epístola pouco ensina a respeito de Cristo, não é apostólica, enfatiza a lei ao invés do evangelho e opõe-se à doutrina de fé e obras exposta por Paulo. Lutero escreve no prefácio de sua tradução do Novo Testamento (1522) que "a Epístola de Tiago é, na realidade, uma epístola de palha". Conclui ainda: "Não posso colocar [a epístola] entre os principais livros, apesar de que, dessa forma, não impediria ninguém de colocá-la onde lhe aprouvesse e estimá-la como lhe aprouvesse, pois há [nela] muitos bons ditados". Em sua obra, Lutero cita a epístola com frequência sem qualquer comentário crítico. Ele a considera Palavra de Deus. Apesar de ter numerado os livros do Novo Testamento, ele não colo¬cou número em Tiago (e nem em 2 Pedro, Judas e Apocalipse), deixando-os no final de sua lista do Novo Testamento.
Quando William Tyndale completou a tradução do Novo Testamento, em 1525, colocou a Epístola de Tiago como último livro do cânon. Traduções subsequentes do Novo Testamento para o inglês colocaram a epístola no lugar habitual, depois de Hebreus e antes de 1 Pedro.

Como Traçar um Esboço de Tiago?
Há muitos e variados esboços da Epístola de Tiago. A epístola, porém, apresenta diversos temas que estão entretecidos e que, com frequência, se repetem. Por essa razão, os comentaristas diferem entre si na divisão exata do texto. Segui a divisão de capítulos e sugiro os seguintes títulos para os cinco capítulos de Tiago:
1.1-27 Perseverança
2.1-26 Fé
3.1-18 Controle
4.1-17 Submissão
5.1-20 Paciência

Eis um esboço mais detalhado:
1.1-27 Perseverança
A. Saudações 1.1
B. Provações 1.2-11
1. Provação da fé 2-4
2. Pedindo sabedoria 5-8
3. Orgulhando-se 9-11
C. Testes 1.12-18
1. Suportando a provação 12
2. Sendo tentado a cobiçar 13-15
3. Recebendo os dons perfeitos 16-18
D. Acordos 1.19-27
1. Aceitando a Palavra de Deus 19-21
2. Ouvindo com obediência 22-25
3. Servindo religiosamente 26,27

2.1-26 Fé
A. A Fé e a Lei 2.1-13
1. Evitem o favoritismo 1-4
2. Sejam ricos em fé 5-7
3. Obedeçam à lei régia 8-11
4. Mostrem misericórdia 12,13
B. Fé e Obras 2.14-26
1. Fé sem obras 14-17
2. Fé, obras e credo 18,19
3. A fé de Abraão 20-24
4. Fé e justificação 25,26

3.1-18 Controle
A. Uso da Língua 3.1-12
1. A disciplina da fala 1,2
2. Exemplos 3-8
3. Louvor e maledicência 9-12
B. Dois Tipos de Sabedoria 3.13-18
1. Sabedoria terrena 13-16
2. Sabedoria celestial 17,18

4.1-17 Submissão
A. Submissão de Vida e Espírito 4.1-12
1. Questionando com a motivação errada 1-3
2. Tendo amizade com o mundo 4-6
3. Aproximando-se de Deus 7-10
4. Julgando um irmão 11,12
B. Submissão à Vontade de Deus 4.13-17
1. Exemplo 13-15
2.Bem e mal 16,17

5.1-20 Paciência
A. Impaciência com os Ricos 5.1-6
1. A quem se refere 1
2. Riqueza 2,3
3. Roubo 4
4. Viver em prazeres 5
5. Homicídio 6
B. Necessidade de Paciência 5.7-11
1. Súplica por paciência 7,8
2. Advertência contra a impaciência 9
3. Exemplos 10,11
C. Juramentos 5.12
D. Persistência na Oração 5.13-18
1. Oração e louvor 13
2. Oração e fé 14,15
3. O poder da oração 16
4. Exemplo 17,18
E. Salvando o Desviado 5.19,20