segunda-feira, 24 de março de 2008

3 - 1º Pedro


Na maior parte das traduções, o título desta carta aparece simplesmente como 1 Pedro. Algumas versões, porém, expandem esse título: "A Primeira Epístola de Pedro" ou "A Primeira Epístola Geral de Pedro". A expressão geral significa que a carta pertence à categoria das epístolas gerais, que é composta de Hebreus, Tiago, 1 Pedro, 2 Pedro, as epístolas de João e Judas.
Supõe-se que, no século II, escribas tenham acrescentado títulos a cada livro do Novo Testamento. Os manuscritos gregos mais antigos têm o título simples 1 Pedro. Porém, manuscritos posteriores revelam que os escribas aumentaram esse sobrescrito, incluindo os termos epístola e geral. Evitando os adornos, adotamos a forma mais curta de título e chamamos a carta de 1 Pedro.

A - Autor
De acordo com o endereço, Pedro enviou esta epístola aos cristãos que eram "forasteiros no mundo, dispersos no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia" (1.1). Esses nomes se referem a regiões que cobrem grande parte da Ásia Menor (Turquia, nos dias de hoje) e indicam que a carta foi lida em muitos lugares. Ela era conhecida nos primeiros séculos? Os pais da igreja afirmam que tinham conheci¬mento da epístola de Pedro.

1. Evidência externa
Por volta de 95 d.C., Clemente de Roma escreve uma carta - 1 Clemente - para a igreja de Corinto. Nela, oferece alguns paralelos com 1 Pedro. O primeiro exemplo encontra-se na saudação da epístola de Clemente, que tem semelhança notável com a da carta de Pedro:

“Àqueles chamados e santificados pela vontade de Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo. Graça e paz do Deus Todo-Poderoso vos sejam multiplicadas em Jesus Cristo.”

No grego, Pedro usa o mesmo vocabulário: chamados, santifica¬dos, graça e paz sejam multiplicadas (1.2). Em seguida, Clemente escreve: "Fixemos nosso olhar no Sangue de Cristo, e saibamos que é precioso ao seu Pai". A alusão às palavras de Pedro "precioso san¬gue... o sangue de Cristo" (1.19) é inconfundível. Em terceiro lugar, o vocabulário de Clemente contém uma série de palavras que aparecem apenas nas epístolas de Pedro. E, por fim, duas das citações do Antigo Testamento (Pv 10.12; 3.34) em 1 Pedro também aparecem na carta de Clemente (4.8 e 1Clem. 49.5; 5.5; e 1 Clem. 30.2).
Na primeira metade do século II, Policarpo escreveu uma carta à igreja de Filipos. Essa carta tem várias citações de 1 Pedro, como por exemplo: "[Jesus Cristo] a quem, não havendo visto, amais; no qual, não vendo agora, mas crendo, exultais com alegria indizível e cheia de glória" (1.3 e 1 Pe 1.8). Mesmo que Policarpo não mencione o nome de Pedro, a fonte das citações é a epístola de Pedro.
Mais para o final do século II (185 d.C.), Irineu não apenas cita 1 Pedro 1.8 como também introduz a citação com as palavras: "e Pedro diz em sua epístola". No século seguinte, Clemente de Alexandria e Tertuliano citam a epístola de Pedro e fazem referência ao nome do apóstolo. O historiador da igreja, Eusébio, observa que Papias, que foi bispo na Ásia Menor (por volta de 125 d.C.), "usou citações da Primeira Epístola de João e, do mesmo modo, também da epístola de Pedro". Em resumo, as evidências externas mostram que a igreja considerava essa epístola autêntica e apostólica.

2. Evidência interna
As epístolas de Pedro testemunham que o apóstolo é o autor pois, na saudação, o escritor se identifica como "Pedro, apóstolo de Jesus Cristo" (1.1). O autor também fala com autoridade e observa que é testemunha ocular do sofrimento de Jesus (5.1). Então, na segunda epístola, o autor declara: "Amados, esta é agora a segunda epístola que vos escrevo" (3.1). E, por fim, Pedro menciona Silas e Marcos e, assim, faz referência aos ajudantes apostólicos cujos nomes eram bem conhecidos na igreja primitiva (ver At 15.22,37; 12.12).
Outra fonte de evidência interna é Atos, onde Lucas registrou alguns dos sermões de Pedro de forma resumida. Pedro pregou para a multidão reunida em Jerusalém para as comemorações do Pentecoste (At 2.14-40), dirigiu-se ao povo que foi ao Pórtico de Salomão (At 3.11-26), falou diante do Sinédrio (At 4.9-12; 5.29-32), pregou na casa de Cornélio (At 10.34-43) e participou do concílio de Jerusalém (At 15.7-11). Os paralelos entre os sermões de Pedro e sua epístola são notáveis. E. G. Selwyn observa: "Poucos poderiam sugerir que os paralelos de idéias e frases entre os discursos e 1 Pedro são basea¬dos numa leitura de São Lucas da Epístola". As evidências, tanto externas quanto internas, apoiam,portanto, a autoria apostólica de 1 Pedro.

3. Objeções
Ainda assim, alguns estudiosos têm objeções em reconhecer Pedro como autor da primeira epístola. Afirmam que encontram várias dificuldades. Eis algumas das principais objeções.

História
Os críticos dizem que, se Pedro é o autor dessa carta, era de se esperar que tivesse incluído nela diversas memórias pessoais. Pedro, porém, escreveu a epístola não como um relato histórico de seu discipulado com Jesus, mas como uma carta de exortação e encorajamento endereçada a cristãos que sofriam. Uma segunda objeção é a seguinte: os sofrimentos mencionados na epístola não podem ser resultado das perseguições que Nero realizou contra os cristãos. Alguns estudiosos partem do pressuposto de que as perseguições de Nero parecem ter se limitado à cidade imperial, e não se espalhado para as províncias (onde viviam os leitores da epístola). Assim, de acordo com aqueles que duvidam da autoria apostólica, a epístola foi escrita não durante o reinado do imperador Nero, mas, sim, mais tarde, durante o governo de Domiciano ou Trajano. De acordo com esse ponto de vista, Pedro não é o autor da epístola que leva o seu nome, pois ele faleceu no tempo de Nero.
Todavia, as evidências são poucas para provar que uma perseguição geral aconteceu nas províncias romanas durante o governo de Domiciano. Apesar de Domiciano ter sido um perseguidor que vitimou cristãos, não há nenhuma indicação de que ele tenha instigado uma perseguição que afetasse os residentes de todas as províncias. Além disso, também são insuficientes as evidências para provar que Trajano adotou e executou as medidas recém declaradas contra os cristãos. Além do mais, a afirmação de que a perseguição de Nero limitou-se a Roma e não se estendeu pelas províncias continua sendo duvidosa. Se não há os fatos necessários para estabelecer um momento na história, bem fazem os estudiosos em evitar comentários dogmáticos.
O conteúdo de 1 Pedro revela que os leitores são da primeira geração de convertidos, pois "não há nenhum traço de Cristianismo de segunda geração". As evidências internas da epístola, portanto, parecem apontar para a época de Nero, e não para o governo de Domiciano ou Trajano.
Uma terceira objeção está relacionada aos respectivos campos missionários de Pedro e Paulo. Os críticos argumentam que Pedro não poderia ter escrito uma carta para as igrejas que Paulo havia fundado. Mas nem Atos e nem as epístolas de Paulo apresentam provas de que Paulo - o apóstolo dos gentios - tenha fundado igrejas em Ponto, Ca¬padócia e Bitínia. Na verdade, acontece o contrário, pois Lucas relata que o Espírito de Jesus não permitiu que Paulo e seus companheiros entrassem na Bitínia (At 16.7). Além do mais, o argumento dos críticos perde sua força quando levamos em consideração a visita de Pedro à igreja de Corinto - uma igreja fundada por Paulo (ver 1 Co 1.12; 9.5).

Estilo
Os estudiosos que são contra a autoria de Pedro afirmam que um pescador sem estudos de um vilarejo à beira do lago da Galiléia seria incapaz de redigir uma carta em grego excelente. Como prova, usam a referência de Atos 4.13, na qual ele observa que os membros do Sinédrio notaram a intrepidez de Pedro e João e também que eram "homens iletrados e incultos". Werner Georg Küimmel afirma: "A linguagem de 1 Pedro é um grego impecável que usa de vários recursos retóricos: a ordem das palavras (1.23; 3.16), orações paralelas (4.11), séries de palavras compostas (1.4), e as muitas citações e alusões ao Antigo Testamento, sem exceção, têm origem na Septuaginta. Essas características são inconcebíveis para Pedro, o galileu".
Antes de avaliarmos essa objeção, devemos observar uma série de pontos. Em primeiro lugar, no século VIII antes de Cristo, Isaías já chamava a Galiléia de "Galiléia dos gentios" (Is 9.1; ver também Mt 4.15). No tempo de Jesus, a Galiléia era profundamente influenciada pela cultura da Grécia e o povo conhecia a língua grega. Tanto Mateus quanto Tiago, por exemplo, eram da Galiléia e redigiram respectivamente um evangelho e uma carta em grego aceitável.
Também, depois de Pedro ter deixado Jerusalém (At 12.17), ele viajou muito para regiões onde o grego era a primeira língua da população. Por meio de seus discursos registrados em Atos, sabemos que ele era capaz de se expressar bem; partimos do pressuposto de que ele desenvolveu seus conhecimentos de oratória e escrita du¬rante os anos de seu apostolado.
Por fim, Pedro informa aos leitores de que escreveu sua epístola com a ajuda de Silas (5.12). Cometeríamos uma injustiça ao texto se considerássemos que Silas foi apenas o mensageiro que levou a carta, e não um escriba colaborador. A partir do relato de Lucas em Atos, sabemos que Silas era um líder na igreja (15.22), um profeta (15.32), um companheiro de trabalho de Paulo (15.40) e um cidadão romano (16.37). Paulo menciona Silas em três de suas epístolas (2Co 1.19; ITs 1.1; 2Ts 1.1). Mesmo considerando que não estamos certos da assistência de Silas na redação das cartas de Paulo, temos certeza de sua colaboração na composição de 1 Pedro.
Não temos que supor que Silas escreveu o esboço da epístola de Pedro, pois então faríamos dele o autor da epístola, ao invés de Pedro. É mais aceitável afirmar que Pedro escreveu a carta e Silas o auxiliou, assim como Tércio ajudou Paulo a escrever a Epístola aos Romanos (Rm 16.22).
Basta dizer que os judeus e cristãos das províncias liam a Septuaginta grega, ao invés do texto em hebraico. Ao escrever sua epístola, Pedro usa a Septuaginta para comunicar de maneira mais eficaz a revelação de Deus.

Composição
Uma última objeção à autoria de Pedro diz respeito à composição da epístola. A carta parece ser uma obra composta de duas partes, pois possui duas conclusões separadas. De acordo com os críticos, em 4.11, o autor escreve uma doxologia que termina com a palavra amém. Em algumas versões, o versículo seguinte começa com o conhecido "amados" e, assim, marca o início de uma segunda carta. Além disso, o texto de 5.10,11 é uma conclusão em forma de oração, doxologia e amém. As saudações finais vêm de outro escritor. Os autores do Novo Testamento, porém, inserem doxologias em várias partes de seus discursos. Tome, por exemplo, a epístola de Paulo aos Romanos, que tem várias bênçãos (1.25; 9.5; 11.36; 15.33; 16.20,24 [há variações nos textos], 27). Finalmente, o argumento de que a expressão amados marca o começo de uma nova carta não pode ser aplicado de modo coerente. Pedro também usa essa expressão em 2.11, onde o contexto simplesmente não permite que haja uma separação. Em resumo, foi Pedro quem compôs a carta, seguindo o estilo comum de sua época.

Inferência
Tendo como base tanto as evidências internas quanto as externas, além das considerações históricas e estilísticas, aceitamos 1 Pedro como um livro apostólico escrito por Pedro. Concluímos, também, que esse ponto de vista tradicional "parece ser mais razoável do que qualquer outra hipótese alternativa".

B - Fonte
Os nomes Pedro e Paulo aparecem sempre nessa sequência. Essa ordem pode ser atribuída ao fato de Pedro, e não Paulo, ser um dos primeiros discípulos e, juntamente com Tiago e João, filhos de Zebedeu, fazer parte do círculo mais íntimo dos discípulos de Jesus. Depois da ascensão de Jesus, Pedro tornou-se líder dos 11 apóstolos e da igreja que nascia em Jerusalém. Acompanhado de João, Pedro foi a Samaria para reconhecer a aceitação dos samaritanos na igreja cristã (At 8.14-25), e Pedro pregou o evangelho na casa de Cornélio, um centurião romano (At 10.27-48).
Apesar de Paulo se autodenominar "o menor dos apóstolos" (lCo 15.9), ele é mais conhecido do que Pedro. Paulo alcançou proeminência por causa das 13 epístolas que escreveu. Entre suas cartas encontram-se a epístola sobre a liberdade cristã (Gálatas), o tratado do Cristianismo (Romanos) e as epístolas pastorais a Timóteo e Tito. Paulo é o teólogo da igreja primitiva, mas, ainda assim, a carta de Pedro não deve ser deixada de lado.
Pedro também é um teólogo, conforme mostra claramente a sua primeira epístola. Ele combina o ensino teológico com conselhos práticos para o viver cristão, de modo que, do começo ao fim, sua epístola é um documento didático. Tendo em vista que, já nos sermões que Lucas registrou em Atos, Pedro demonstra sua perspicácia teológica, em sua primeira epístola nos vemos diante de Pedro como um teólogo.

É provável que não haja nenhum documento no Novo Testamento que seja tão teológico quanto l Pedro, se considerarmos 'teológico' estritamente aquilo que diz respeito ao ensino sobre Deus. Pedro cita características de Deus: santidade, bondade, fidelidade e graça. Refere-se à obra divina de eleger, regenerar, redimir e julgar seu povo. Pedro define, ainda, sua doutrina de Cristo ao revelar a divindade, hu¬manidade e ausência de pecado em Jesus. Trata, também, do ministério do Espírito Santo, da igreja primitiva e do fim dos tempos.

1. Dependência de Paulo
Antes de discutirmos a teologia de Pedro propriamente dita, devemos fazer algumas perguntas. Em primeiro lugar, Pedro depende de Paulo em sua teologia? Não, pois faltam-nos evidências de que Pedro tenha copiado, sem nenhuma originalidade, as epístolas de Paulo. Sem dúvida, ele estava completamente a par dos escritos de Paulo (ver especialmente 2Pe 3.15,16), pois são muitas as alusões às epístolas de Paulo em suas cartas, mas as semelhanças podem ser atribuídas a interesses mútuos e à discussão de questões doutrinárias. O paralelismo dos escritos de Pedro e Paulo, portanto, pode ser explicado pelo respeito mútuo entre os dois apóstolos, bem como pelo ponto de vista que um toma emprestado do outro, ou seja, esses dois apóstolos têm um relacionamento caracterizado pela interdependência. Não é impensável a possibilidade de terem se encontrado pessoalmente em Jerusalém, na Ásia menor, Macedônia, Grécia ou Itália. Aliás, sabemos de alguns desses encontros por referências na epístola de Paulo aos gálatas (Gl 1.18; 2.9,11-14) e em Atos (15.2,7).
Além do mais, pelo fato de Paulo incentivar os crentes a lerem suas cartas nas igrejas, Pedro conhecia seu conteúdo (2Pe 3.15,16). Devemos tomar cuidado, porém, para não supormos que Pedro dependia completamente das epístolas de Paulo. A verdade é que Pedro escreveu suas epístolas como um autor independente.

2. Dependência de Tiago
Em segundo lugar, Pedro depende da Epístola de Tiago? O paralelismo entre Tiago 4.6-10 e l Pedro 5.5-8 é inegável. Ambos os autores citam Provérbios 3.34, ambos mencionam a submissão e a humildade, ambos fazem referência ao diabo. Uma rápida observação dos paralelos, entretanto, é suficiente para ver a diferença: a versão de Pedro é mais extensa que a de Tiago. Se adotarmos a regra geral de que o texto mais curto é provavelmente o original, concluímos que Pedro estava familiarizado com a carta de Tiago. Ele tomou emprestado seu texto e o expandiu. Eis os paralelos:

Tiago 4.6,7a,10 — Pelo que diz: "Deus se opõe ao soberbo, mas dá graça ao humilde". Submetam-se, portanto, a Deus... Humilhem-se diante do Senhor e ele os levantará.

1 Pedro 5.5,6 — Rapazes, do mesmo modo sejam submissos àqueles que são mais velhos. Todos vocês, vistam-se de humildade uns para com os outros, pois "Deus se opõe aos soberbos, mas dá graça aos humildes". Humilhem-se, portanto, sob a poderosa mão de Deus, para que ele possa exaltar vocês no devido tempo.

Tiago 4.7b — Resistam ao diado e ele fugirá de vós.

1Pedro 5.8 — O seu inimigo, o diabo, ronda como um leão que ruge, procurando alguém para devorar.

São várias as semelhanças entre a epístola de Tiago e l Pedro. Veja, por exemplo, Tiago 1.1 e 1 Pedro 1.1; Tiago 1 .2,3 e 1 Pedro 1 .6,7; Tiago 1.10,11 e 1 Pedro 1.23. Por causa de uma afinidade que havia entre os dois, Pedro não só conhecia a Epístola de Tiago, mas também havia estabelecido com ela um relacionamento de interdependência.

3. Palavras de Jesus
Por fim, a epístola de Pedro inclui muitas palavras de Jesus, algumas das quais são óbvias; outras são indicadas por sinónimos. Eis um paralelo claro:

João 20.29 — "Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram, e creram."
IPedro 1.8 — Apesar de vocês não o terem visto, vocês o amam; e mesmo que vocês não o vejam agora, crêem nele e estão cheios de uma alegria inexprimível e gloriosa.

Em cada capítulo de sua epístola, Pedro faz alusão às palavras de Jesus. Robert H. Gundry observa: "Um exame das passagens do evangelho onde [essas palavras de Jesus] aparecem mostra que, na maioria dos casos, o apóstolo Pedro é um participante especialmente ativo nos contextos narrativos". De fato, Pedro se lembrava dos ensinamentos de Jesus e, além disso, havia ensinado o evangelho du¬rante décadas quando escreveu sua epístola.

C. Teologia

1. Doutrina de Deus
Pedro ensina claramente a doutrina do Deus Triúno logo no começo de sua epístola.
Deus, o Pai, elegeu seu povo de acordo com sua presciência, Jesus Cristo verteu seu sangue por ele e o Espírito o santificou (1.1,2). As três pessoas da Trindade tomam parte na redenção do pecador. Pedro se refere a Deus Pai em duas outras partes (1.3,17). Em sua epístola, ele revela a soberania de Deus. Deus pré-ordena (1.2; comparar com 2.9), cria (4.19) e governa ao estender sua vontade sobre a vida do crente: na conduta (2.15), no sofrimento (3.17; 4.19) e na vida em geral (4.2).
Alguns dos atributos de Deus observados por Pedro são santidade, bondade, fidelidade e graça. Ao citar o Antigo Testamento (Lv 11.44,45), Pedro ensina que Deus é um Deus santo que ordena que seu povo seja santo, assim como ele o é (1.15,16). Ele escreve que "o Senhor é bondoso" (2.3). Observa ainda a fidelidade de Deus numa exortação aos crentes para que "encomendem as suas almas ao fiel Criador" (4.19). Além disso, menciona a graça eletiva de Deus (2.9,10), o dom da graça divina (4.10,11) e o dom da graça "na revelação de Jesus Cristo" (1.13).
Pedro revela que Deus demonstra uma possessividade para com seu povo quando escreve: "Mas vocês são um povo escolhido, um sacerdócio real, uma nação santa, um povo pertencente a Deus" (2.9). Com uma referência a Oséias 2.23, Pedro declara que os leitores que, no passado "não [eram] povo", passaram a ser chamados de "povo de Deus" (2.10), isto é, Deus lhes deu um novo nascimento (1.3), de modo que fossem "nascidos de novo, não de semente perecível, mas imperecível" (1.23). Pedro diz que Deus redimiu seu povo não com coisas perecíveis (prata e ouro), mas com o precioso sangue de Jesus Cristo (1. 18,19). E, por fim, Deus julga o seu povo no dia do julgamento, quando começa com a família de Deus e em seguida trata daqueles que desobedeceram à sua Palavra (4.17).
Em resumo, a doutrina de Deus é central na epístola de Pedro. Francis Wright Beare escreve: "Claramente, a idéia dessa carta não é cristocêntrica, mas teocêntrica, começa e volta constantemente para a ideia de Deus como Criador, Pai e Juiz".

2. Doutrina de Cristo
Apesar de Pedro não desenvolver uma doutrina de Cristo, implicitamente ele dirige a atenção para a humanidade e a divindade de Jesus. Ele pressupõe a humanidade de Jesus, pois nos admoesta a seguir os passos de Cristo, que é nosso exemplo (2.21). Refere-se também ao corpo de Cristo no madeiro (2.24), no qual Cristo morreu por nossos pecados (3.18). Além disso, Pedro também declara que Cristo sofreu em seu corpo (4.1) e que o próprio apóstolo foi testemunha do sofrimento de Cristo (5.1).
Com citações e alusões à profecia de Isaías, Pedro ensina a ausência de pecado em Cristo. "Ele não cometeu pecado, nem engano algum foi achado em sua boca" (2.22; Is 53.9). Tendo em vista que o Cristo sem pecado tomou nossos pecados sobre si na cruz (2.24), Pedro diz: "pelas feridas dele vocês foram curados" (v. 24; Is 53.5). Cristo, o "cordeiro sem defeito" (1.19; Is 53.7), morreu pelo injusto (3.18). Pedro ensina a doutrina da expiação quando aponta para a "aspersão do sangue de Jesus Cristo" (1.2) e para a redenção do crente com o "precioso sangue... de Cristo" (1.19).
Indiretamente, Pedro trata da divindade de Jesus Cristo. Ele o faz ao colocar Jesus no mesmo nível de Deus Pai e ao mencioná-los juntos em pelo menos dois versículos (1.2,3). Assim, Pedro exige a crença na filiação singular de Cristo. Para o apóstolo, Jesus é Se¬nhor (1.3; 3.15), assim como o Pai é Senhor (1.25; 3.12).
Pedro menciona a ascensão e a ressurreição de Cristo? Sim, de maneira bastante direta. No começo de sua carta, ele escreve que Deus Pai "nos deu um novo nascimento para uma esperança viva por intermédio da ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos" (1.3) e, quando discute o batismo, observa que "também salva vo¬cês... pela ressurreição de Jesus Cristo" (3.21). Até mesmo as palavras da benção de Pedro - "que chamou vocês para sua glória eterna em Cristo" - deixam subentendidas a ressurreição de Jesus (5.10). Assim, Donald Guthrie afirma com franqueza:

“Se o apóstolo Pedro não tivesse nenhuma ligação com a primeira epístola que leva o seu nome (e há bons motivos para afirmar que ele teve), seu testemunho da ressurreição de Cristo seria de valor inestimável, não simplesmente por causa de seu ofício apostólico, mas especialmente porque, como antigo discípulo do Jesus histórico, ele passara a aceitar o que um dia afirmara ser impensável - o sofrimento e ressurreição do Messias.”

Devemos admitir que os comentários de Pedro sobre a ascensão limitam-se a um determinado versículo. Escreve: "Jesus Cristo, o qual, depois de ir para o céu, está à destra de Deus" (3.21,22). Ainda assim, essa única referência é suficiente, pois, consoante ao resto do Novo Testamento, Pedro aponta para a posição exaltada de Cristo (ver At 1.9-11; Hb 1.3; 4.14; 12.2). Anjos, autoridades e potestades estão sujeitos a ele (3.22; Ef 1.21; 6.12).

3. Espírito Santo
Há poucas referências ao Espírito Santo na epístola de Pedro (1.2,11,12; 4.14).
Apesar de serem esparsas, elas descrevem de maneira ampla a obra do Espírito Santo. Essa obra vai da santificação do eleito (1.2) e previsão do sofrimento de Cristo e "sobre as glórias que o seguiram" (1. 11) até a orientação àqueles que "vos pregaram o evangelho" (1.12). O Espírito Santo não apenas assume um papel ativo na ressurreição de Cristo (3.18), como também, na forma de Espírito de glória, repou¬sa sobre os cristãos que sofrem (4.14).
Com as palavras Espírito de Cristo, Pedro liga o Espírito Santo diretamente a Jesus Cristo (1.11). Essa escolha de palavras aparece nas epístolas de Paulo (Rm 8.9; Fp 1.19), que também fala do Espírito do Filho de Deus (Gl 4.6). E, por último, Lucas relata que quando Paulo e seus companheiros tentaram entrar na Bitínia, o Espírito de Jesus não permitiu que assim o fizessem (At 16.7).

4. A Igreja
Pedro não usa o termo igreja em parte alguma de sua epístola. Ainda assim, lança mão de uma série de expressões para descrever o povo de Deus. Retrata, por exemplo, os seguidores de Jesus Cristo como "eleitos" e "forasteiros do mundo" (1.1). Para Pedro, os crentes são "povo escolhido, um sacerdócio real, uma nação santa, um povo pertencente a Deus" (2.9). Pedro tira esses termos do Antigo Testamento, de modo que ele vê os membros da igreja de Cristo como uma continuação do Israel espiritual. O povo de Israel, mostrado no Antigo Testamento, recebeu a revelação divina de que era o povo escolhido de Deus que pertencia a ele (ver Dt 10.15; ISm 12.22). Além disso, os termos descritivos sacerdócio real e nação santa assemelham-se às instruções dadas por Deus a Israel no Sinai: "Vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa" (Êx 19.6; ver também Dt 7.6; Is 62.12). Pedro também chama Jesus de Pastor espiritual e Bispo do povo de Deus (2.25). Assim como Jesus é o Pastor Maior, Pedro e seus companheiros presbíteros são pastores responsáveis diante de Jesus pela supervisão do rebanho (5.1-4). Mesmo que Pedro se identifique como apóstolo (1.1), ele se coloca no nível dos presbíteros. Com modéstia, ele se autodenomina "presbítero como eles" (5.1), e assim serve de exemplo para aquilo que exorta os presbíteros a fazerem, ou seja, pastorear não "dominando sobre aqueles que lhes foram confiados, mas sendo exemplos para o rebanho" (5.3).
Por fim, do início à conclusão de sua epístola, Pedro designa tanto a igreja quanto Jesus como sendo eleitos de Deus (1.2; 2.4,6,9; 5.13). Por isso, Pedro conclui dizendo que os leitores encontram-se "em Cristo" (5.14).

5. Escatologia
Tendo em vista o sofrimento intenso suportado pelos leitores, Pedro dá alguma indicação de que estão vivendo os últimos dias, nos quais a vinda de Jesus é iminente? Pedro é um tanto direto ao expressar suas expectativas. Diz: "Ora, o fim de todas as coisas está próximo" (4.7). Essa é uma indicação de que Pedro espera que Jesus volte em breve (comparar com Tg 5.9). Em outras passagens, Pedro revela que ele e seus contemporâneos estão vivendo nos últimos dias (1.5; 2.12). Ele encoraja os cristãos que estão sofrendo ao dizer-lhes que Deus irá tirá-los de seu sofrimento e levá-los para a glória (4.13; 5.10).
A herança do crente não está na terra, mas é guardada por Deus no céu (1.4). O que é o céu, na visão de Pedro? O céu é o lugar em que Jesus está à destra do pai e onde anjos, autoridades e potestades estão sujeitos a ele (3.22). Pedro descreve o céu como o lugar onde habita o Espírito Santo e onde os anjos desejam perscrutar a salvação dos seres humanos.
Pedro também fala do julgamento dos crentes e daqueles que desobedecem a Deus. Na verdade, Pedro esclarece que, para a família de Deus, o tempo do julgamento está aqui. "Se ele começa conosco, qual será o resultado para aqueles que não obedecem ao evangelho" (4.17)? Para justificar suas palavras, ele apela para uma passagem do Antigo Testamento: "E se é com dificuldade que o justo é salvo, onde vai comparecer o ímpio, sim, o pecador?" (v. 18; Pv 11.31).

6. Vontade de Deus
Os apóstolos encorajam os cristãos a viverem de maneira exemplar para que os pagãos possam reconhecer as boas obras e até mesmo glorificar a Deus (2.12). O tema ao qual Pedro sempre volta é o do dever cristão de fazer o bem (2.15,20; 3.6,17). Eles devem viver e sofrer em obediência à vontade de Deus (4.2,19). Os cristãos sabem que a vontade de Deus é que determina suas vidas, pois ele espera que seu comportamento ganhe outros para Cristo. Pedro apela diretamente para o exemplo que Cristo deu e, assim, aconselha os leitores a seguirem os passos de Jesus (2.21). Concluindo, o cristão não pode agir de maneira independente do exemplo de Jesus, mas deve estar sempre em Cristo.

D. Leitores

1. Regiões
Quem são os destinatários das epístolas de Pedro? A partir do endereço, ficamos sabendo que eles vivem na Ásia Menor (hoje em dia, Turquia) - em suas regiões oriental, central e ocidental e naquelas à beira do Mar Negro. Pedro escreve "aos eleitos que são forasteiros no mundo, dispersos no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia" (1.1). Sabemos que habitantes dessas regiões estavam em Jeru¬salém no dia de Pentecoste (At 2.9-11) e ouviram o evangelho ser proclamado pelos apóstolos. Supomos que alguns dentre os três mil convertidos à fé cristã eram da Capadócia, Ásia e Ponto (At 2.9,41). Durante suas viagens missionárias, Paulo fundou igrejas em algumas dessas províncias (ver At 16.6; 18.23; 19.10,26).
Se reconhecermos que Pedro escreveu essa epístola em Roma, é de se esperar que ele use os nomes Ponto, Galacia, Capadócia, Ásia e Bitínia para referir-se às províncias romanas, e não às regiões geográficas. Pedro, porém, menciona Ponto e Bitínia separadamente, mesmo que os administradores romanos tivessem transformado es¬sas duas áreas numa única província. Observe também que os nomes Pisídia, Frigia, Panfília e Cilícia, conhecidos por causa das viagens de Paulo, não aparecem aqui. Esses nomes normalmente são associados à região Sul da província da Galácia. Concluímos, portanto, que Pedro dirige sua carta para "o resto da Ásia Menor que não havia sido evangelizada por Paulo".

2. Judeus e gentios
Os destinatários eram judeus, gentios, ou havia ambos? As várias citações e alusões do Antigo Testamento dão a impressão de que os leitores eram judeus. Além disso, as palavras introdutórias são bastante judaicas: "Ao povo eleito de Deus, forasteiros do mundo" (1.1). Essas eram palavras-chaves para um judeu vivendo fora de Israel: ele se considerava entre os eleitos de Deus, sabia que era um forasteiro no mundo e vivia na Dispersão. Além disso, enquanto Paulo era o missionário dos gentios, Pedro era o apóstolo dos judeus (Gl 2.7-9).
Todavia, a distinção entre Pedro e Paulo não deve ser determinada de forma muito rígida, pois em Atos e nas epístolas de Paulo lemos que ele ministrou as boas-novas a judeus e gentios. Em seu discurso de despedida aos presbíteros de Éfeso, na praia de Mileto, por exemplo, Paulo diz: "Testificando tanto a judeus como a gregos o arrependimento para com Deus e a f é em nosso Senhor Jesus [Cristo]" (At 20.21; ver também Rm 1.16). Em sua segunda viagem missionária, enquanto estava em Corinto, "Paulo se entregou totalmente à palavra, testemunhando aos judeus que o Cristo é Jesus" (At 18.5).
Apesar de se saber pouco sobre o trabalho de Pedro depois que ele deixou Jerusalém e "retirou-se para outro lugar" (At 12.17), estamos certos de que também pregou a judeus e gentios. Numa ocasião anterior, o próprio Pedro havia entrado na casa de Cornélio, onde disse: "Vós bem sabeis que é proibido a um judeu ajuntar-se ou mesmo aproximar-se de alguém de outra raça, mas Deus me demonstrou que a nenhum homem considerasse comum ou imundo" (At 10.28). Suas epístolas oferecem indicações esparsas de que alguns de seus leitores eram gentios. Assim, Pedro lembra seus leitores de que antes eles viviam na ignorância (1.14), que foram "resgatados do [seu] fútil procedimento que [seus] pais [lhes] legaram (1.18), que "antes não [eram] povo, mas agora [são] povo de Deus" (2.10) e de que, no passado, tinham desperdiçado seu tempo "[executando] a vontade dos gentios" (4.3).
Levando em consideração a miscigenação da população nas províncias da Ásia Menor, somos da opinião de que tanto judeus quanto gentios receberam o evangelho de Cristo e aceitaram pela fé o chamado dos apóstolos. Além disso, algumas pessoas, às quais Pedro se dirige, eram escravas. Podemos inferir que muitos desses escravos eram gentios (2.18-20).
Através de suas sinagogas locais na Ásia Menor, Macedônia e Grécia, o povo judeu evangelizou a população gentia, de modo que muitos ficaram conhecidos como "tementes a Deus" (At 10.2; 13.26,50; 17.4,17). Os gentios tementes a Deus aceitaram o evangelho de Cristo e se tornaram membros da igreja em conjunto com os judeus cristãos.

3. Perseguições
Em quatro dos cinco capítulos de sua epístola, Pedro faz alusão à perseguição aos cristãos. Deixa implícito que os crentes estão vivendo tempos difíceis, pois, como uma minoria, sofrem a rejeição do resto da população. Escravos cristãos suportam o sofrimento injusto na mão de senhores cruéis (2.18-20) e crentes são difamados por pagãos que acham estranho os cristãos terem deixado de lado seu estilo de vida dissoluto (4.3,4).
As passagens nas quais Pedro se refere indiretamente à perseguição são as seguintes: 1.6,7; 3.13-17; 4.12-19; 5.9. Na primeira referência, aparece a palavra provações: "Sejais contristados por várias provações" (1.6). Na segunda, as frases de linguagem legal são proeminentes: "preparados para responder", "com mansidão e temor", "com boa consciência", "àqueles que falam maliciosamente contra o seu bom comportamento" (3.15,16). Na terceira passagem, a terminologia de tribunal fica mais uma vez evidente: "injuriados", "assassino, ou ladrão ou malfeitor" e "juízo" (4.12-17). Por fim, o sofrimento pelo qual os cristãos passavam se estendia de modo vasto: "Os seus irmãos por todo o mundo estão passando pelo mesmo tipo de sofrimento" (5.9). A epístola de Pedro, porém, dá poucos detalhes sobre os procedimentos oficiais nos tribunais contra os cristãos. Além disso, em sua carta, o termo perseguição não aparece. Devemos evitar, portanto, tentar inserir fatos históricos específicos no texto desta epístola.
Historiógrafos registraram informações sobre as perseguições instigadas pelos imperadores romanos. Nero, que governou de 54 a 68 d.C., ateou fogo em dois terços das residências e prédios de Roma em julho de 64 e culpou os cristãos por esse ato. Apesar de historiadores romanos contarem que Nero queimou cristãos na fogueira em Roma, não podemos provar que a tradução o fogo ardente (4.12) deva ser interpretada literalmente. Se considerarmos a palavra arden¬te de modo figurativo, damos sentido mais amplo a ela do que se a limitarmos a uma única referência a um acontecimento específico. Considere, por exemplo, a questão da coerência exegética. Se adotamos a regra da hermenêutica de deixar que as Escrituras sejam sua própria intérprete, então devemos comparar o "fogo ardente" de 4.12 com as provações descritas em 1.6,7. Nessa passagem (1.6,7), Pedro explica o conceito de provação com uma ilustração do ouro que é purificado pelo fogo. Ele conclui que esse processo ardente de purificação é necessário para provar quão autêntica é a fé do crente (1.7). Em resumo, as evidências que ligam a expressão fogo ardente à incidência de cristãos sendo queimados a mando de Nero não é indiscutível.
Os cristãos eram perseguidos "pelo nome de Cristo" (4.14). Esse nome em si era motivo suficiente para levar um cristão ao tribunal. Jesus previu que isso aconteceria quando disse: "Por minha causa sereis levados à presença de governadores e de reis" (Mt 10.18). Não devemos ligar a perseguição à qual Pedro faz alusão diretamente a Plínio, o governador da Bitínia de 109 a 111 d.C. Plínio dirigiu uma inquisição contra os cristãos naquela província e perguntou ao imperador Trajano se deveria perseguir os cristãos por causa "do nome em si".26 Não temos, porém, nenhuma indicação de que a inquisição no tempo de Trajano tenha sido realizada em todos os domínios romanos. Ao que tudo indica, estamos diante de uma única incidência de perseguição mencionada na correspondência entre Plínio e Trajano, mas não de uma perseguição oficial patrocinada pelo imperador. Concluímos dizendo que as perseguições mencionadas na epístola de Pedro parecem ser perturbações locais geradas por pessoas que ex¬pressavam seu ódio aos cristãos.

E. Data e Local
Se aceitamos a autoria apostólica de 1 Pedro, eliminamos uma data mais recente para essa epístola (durante o reinado de Domiciano, no começo da década de 90, ou durante o reinado de Trajano, entre 110-111). Aceitamos, portanto, uma data de redação anterior a 68, quando Nero cometeu suicídio. De acordo com a tradição, Pedro foi crucificado nas cercanias de Roma nos últimos anos do governo de Nero. Pelo fato de 1 Pedro ter várias referências às epístolas de Paulo, presumimos que Pedro tenha escrito sua epístola depois de Paulo ter escrito as suas. Romanos foi escrito em 58, quando Paulo terminou sua terceira viagem missionária, e Paulo escreveu Efésios e Colossenses quando passou dois anos (61-63) em Roma sob prisão domiciliar. Assim, devemos estabelecer a data para 1 Pedro depois da elaboração dessas epístolas na prisão.
Uma segunda indicação de uma data mais antiga é a referência aos presbíteros e seus deveres (5.1-4). Pedro se autodenomina um presbítero como eles e, assim, coloca-se no mesmo nível dos presbíteros que serviam nas igrejas locais. Suas instruções aos líderes oficiais nessas congregações estão de acordo com as instruções de Paulo a Timóteo e Tito no que diz respeito à qualificação dos presbíteros e diáconos (ITm 3.1-13; Tt 1.5-9). Paulo escreveu essas duas epístolas pastorais aproximadamente em 63-64. Sabemos que Pedro estava a par das epístolas escritas por Paulo e as considerava Escrituras (consultar 2Pe 3.16).
Além disso, a epístola não tem qualquer indicação de que seja dirigida a cristãos da segunda geração, de modo que uma data na década de 60 parece plausível. É mais provável que esse tipo de situação que prevalecia simultaneamente em um número considerável de comunidades na Anatólia (hoje em dia, Turquia) tenha ocorrido mais cedo - e não mais tarde - no período que estamos considerando.
Uma quarta indicação é que Pedro exorta os leitores a serem submissos ao rei e honrá-lo (2.13,17). Dificilmente seria de se esperar essa exortação, caso Pedro tivesse escrito depois de Nero haver executado vários cristãos, depois do incêndio de Roma, em 64. As¬sim, datamos a redação de 1 Pedro em 63 ou começo de 64.
A referência de Pedro à Babilónia (5.13) é tradicionalmente vista como um nome em código para Roma. O caráter secreto por meio do qual Pedro transmite saudações reflete não apenas os tempos perigo¬sos em que ele e seus leitores viviam, como também o desejo de proteger a igreja de algum possível mal. Pedro escreve: "Aquela que se encontra em Babilónia, escolhida juntamente com vocês, envia suas saudações" (v. 13). Se a intenção de Pedro era dizer que sua esposa (lCo 9.5) mandava lembranças, ele teria acrescentado suas próprias saudações. Tendo em vista que a referência de Pedro a uma senhora não pode estar relacionada à sua esposa, os estudiosos interpretam esse versículo de modo figurativo. Dizem que a igreja eleita de Jesus Cristo está enviando suas saudações às igrejas da Ásia Menor. Com frequência, os autores do Novo Testamento apresentam a igreja em termos femininos.
A expressão “aquela” se refere à igreja da Babilónia. Mas se Pedro fala figurativamente, será o termo Babilónia também simbólico? Sim, pois não temos nenhuma evidência de que Pedro tenha viajado para a Babilónia para pregar o evangelho ali. Além do mais, uma tentativa de igualar Babilónia a um forte militar romano no Egito parece pouco provável. Desse modo, os estudiosos optam pela explicação de que o termo é um pseudónimo para Roma. Tomando como referência o livro de Apocalipse e escritos judaicos, vemos que era comum chamar Roma de "Babilónia". Os escritores judeus o faziam por causa da semelhança entre os babilónios, que destruíram o templo de Salomão em 586 a.C., e os romanos, que destruíram Jerusalém em 70 d.C. Em Apocalipse, "Roma é Babilónia não porque havia destruído a Cidade Santa, mas por ser a mãe de meretrizes e abominações".
A tradição afirma que Pedro passou algum tempo na cidade imperial e foi martirizado em seus arredores. Parece crível a suposição de que Pedro tenha escrito sua epístola em Roma, pois as evidências da tradição apontam para Roma como o lugar de sua redação. Papias, bispo de Hierápolis (125 d.C.), relata que Marcos era intérprete de Pedro. Além disso, Irineu comenta que tanto Pedro quanto Paulo pregaram em Roma e que depois, "Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, também nos entregou de forma escrita o que havia sido pregado por Pedro". Os patriarcas da igreja não hesitam em ligar Pedro a Roma, onde o apóstolo escreveu sua primeira epístola.

F. Estrutura

1. Propósito
Qual é o propósito de 1 Pedro? À primeira vista, não conseguimos descobrir qualquer objetivo, e acabamos concluindo que o autor não declara qualquer propósito. Mas esse não é o caso, pois, no final de sua epístola, Pedro formula uma breve explicação sobre o propósito de seus escritos: encorajar os leitores a testemunharem sobre a verdadeira graça de Deus (5.12). Essa declaração breve, na verdade, resume o que Pedro está dizendo aos leitores em outras partes da carta (1.1,2; 4.12-5.14). Ele encoraja os cristãos que estão sofrendo a esperarem e aceitarem as dificuldades que encontram por causa de sua fé em Cristo. Pedro os exorta a manterem-se firmes. Pede que compartilhem do sofrimento de Cristo e participem de sua glória(4.13,14).
Em resumo, o propósito de Pedro ao escrever essa carta era o desejo de transmitir uma mensagem de esperança e encorajamento. A palavra esperança é uma palavra-chave que aparece cinco vezes em 1 Pedro (1.3,13,21; 3.5,15). Pedro escreve uma carta de esperança para os cristãos que estão passando por intenso e frequente sofrimento.

2.Tema
Apesar dos estudiosos encontrarem mais de um tema nas epístolas de Pedro, eles concordam que o tema sofrimento está entretecido na trama de toda a carta. Pedro discute esse tema em cada um dos capítulos. Em sua primeira referência explícita, ele afirma que os leitores "mesmo que por um pouco de tempo vocês tenham precisado passar por profunda tristeza em todo tipo de provação" (1.6). Em sua última declaração, ele fala mais uma vez da brevidade do sofrimento: "E o Deus de toda graça, que chamou vocês para sua glória eterna em Cristo, depois que vocês tiverem sofrido por um pouco, irá, ele próprio, restaurar vocês e fazê-los fortes, firmes e inabaláveis" (5.10). Entre um texto e outro, Pedro menciona o sofrimento em várias passagens.
Os cristãos suportam o sofrimento num mundo que não é seu lugar. Eles são forasteiros no mundo e, portanto, são rejeitados por ele. Como resultado, recebem escárnio e desprezo. Experimentam o sofrimento por causa do nome de Cristo. Observe, então, que Pedro se dirige aos leitores não como irmãos e irmãs no Senhor, mas como "forasteiros na Dispersão" (1.1). Ele os chama de "peregrinos e forasteiros" (2.11). Pedro não defende um isolamento do mundo. Pelo contrário, ele exorta os cristãos a terem uma vida exemplar no mundo e a fazerem o bem (2.12,15,20,21; 3.13-17; 4.19).
Do primeiro ao último capítulo, Pedro escreve uma série de exortações e instruções aos leitores para serem santos e evitarem o mal (1.14-16; 2.1,11; 3.8,9; 4.1-11). É seu desejo que os crentes compreendam que quando sofrem não estão passando por um exercício sem propósito, mas que estão se submetendo a um teste divino planejado com o propósito de provar sua fé (1.7). O sofrimento em si não é uma anormalidade que os crentes têm que suportar. Pelo contrário, é a experiência comum de qualquer um que vive em comunhão com Cristo (4.13).
Pedro se dirige a escravos que sofrem injustiças na mão de senhores cruéis (2.18), a esposas que vivem com maridos descrentes (3.1-6) e a todos os outros que sofrem por amor à justiça (3.13-17) e devem submeter-se ao "fogo ardente" (4.12). Ele os informa que estão no mundo para fazer a vontade de Deus. Assim, exorta a esposa crente a procurar converter seu marido por meio de seu comportamento honesto e reverência (3.2) e ganhá-lo para Cristo não por argumentos, mas pela conduta. Pedro admoesta os cristãos a mostrarem o devido respeito para com o rei, tratando-o com honra (2.17). Ainda assim, ele usa o pseudónimo Babilônia ao referir-se a Roma, a capital imperial (5.13). Pedro quer que os cristãos vivam de maneira honrada em meio aos descrentes. Nas palavras de Jesus, os cristãos devem ser "prudentes como as serpentes e símplices como as pombas" (Mt 10.16).
O tema do sofrimento, na verdade, amarra a epístola como um todo, transformando-a numa unidade literária. E verdade que a epístola de Pedro é uma mistura de teologia e admoestações para o viver cristão prático. Mesmo assim, esse tema em particular fala a uma situação real dentro das comunidades cristãs primitivas que passavam por opressão e perseguição.
Um outro assunto que Pedro discute delongadamente é a submissão. Ele desafia os leitores a serem obedientes aos superiores. Eis uma lista de referências: 1.2 ("obediência"); 1.14 ("obediente"); 1.22 ("obedecendo"); 2.8 ("desobedecendo"); 2.13 ("sujeitai-vos"); 3.1,5 ("submissos"); 3.6 ("obedeceu"); 3.20 ("desobedeceu"); 4.17 ("obedecem"); 5.5 ("submissos").

3. Liturgia
Numa epístola relativamente curta, com cinco capítulos, Pedro faz 12 citações ao Antigo Testamento: seis são da profecia de Isaías, duas de Provérbios, duas de Salmos, uma de Êxodo e uma de Levítico. 1 Pedro tem, proporcionalmente, mais citações e alusões ao Antigo Testamento do que qualquer outra epístola do Novo Testamento. Ao citar essas passagens, Pedro se baseia tanto na versão da Septuaginta como em sua memória.
Além de citar versículos das Escrituras, o apóstolo lança mão de citações de trechos de hinos e credos que eram usados na igreja cristã primitiva? Faltam-nos evidências sólidas, mas em algumas passagens esse parece ser o caso (ver, por exemplo, 1.18-21; 2.21-25; 3.18,19). Se colocarmos 3.18 e 22 numa disposição poética, vemos a forma rudimentar de uma confissão que talvez fosse recitada na igreja:

“Pois Cristo morreu pelos pecados de uma vez por todas,
o justo pelos injustos,
para levar vocês até Deus.
Ele foi morto no corpo,
mas vivificado pelo Espírito...
[Cristo], que foi para o céu e
está à direita de Deus -
com anjos, autoridades e poderes
submissos a ele”.

William Joseph Dalton conclui: "Uma simples leitura do texto... apoia fortemente a ideia de que 3.18,22 está em forma de hino, enquanto 3.19-21 é uma inserção em prosa. E mais, o versículo 22 parece dar continuidade ao versículo 18. Assim, podemos dizer que 3.18,22 é parte ou todo de um hino cristológico, enquanto 3.19-21 é um texto catequético sobre o batismo". Além disso, tendo em vista que o texto começa com a conjunção pois, os estudiosos acreditam que Pedro cita um hino cristológico primitivo. Paulo também incorpora as palavras de um credo em forma de hino em uma de suas cartas:

“Aquele que foi manifestado na carne,
foi justificado em espírito, contemplado por anjos,
pregado entre os gentios, crido no mundo,
recebido na glória” [lTm 3.16]

1 Pedro é um sermão sobre o batismo? Muita coisa já foi escrita sobre essa questão, especialmente por estudiosos que pesquisaram a estrutura básica da epístola. Certamente, a carta em si pode ser o material de um sermão que o próprio Pedro pregou. A esse material ele supostamente acrescentou saudações, uma introdução, uma bênção e uma conclusão e enviou-o na forma de uma carta para as igrejas da Ásia Menor. É claro que 1 Pedro não é um sermão, mas uma epístola apostólica.
Alguns estudiosos apresentaram uma pesquisa detalhada sobre a epístola, a fim de mostrar que a epístola de Pedro, de 1.1 a 4.6, é um sermão batismal que foi pregado a recém convertidos e que o segmento de 4.7 a 5.14 era dirigido a toda a congregação.
Outros afirmam que l Pedro é uma liturgia batismal relacionada à Páscoa.
Porém, as evidências de que a epístola é uma liturgia sobre o batismo são duvidosas e sujeitas a objeções.
Uma das objeções a essa teoria é o fato de a epístola de Pedro falar explicitamente sobre o batismo em apenas uma passagem, a saber 3.21. Consequentemente, um estudioso que faz uma lista de referências implícitas sobre o batismo em l Pedro corre o risco de ser subjetivo. Ele deve demonstrar de maneira convincente que Pe¬dro deseja transmitir um significado batismal com as expressões regenerou e crianças recém nascidas (1.3; ver também 1.23; 2.2), mas o contexto desses versículos tem a conotação de "uma regeneração espiritual sem referência a qualquer rito externo... [e] sem referência a água".
Outra objeção é o grande número de referências ao sofrimento que é suportado pelos cristãos: experiências que vão do sofrimento do escravo nas mãos de seu senhor cruel (2.18-20) até crentes que vêem-se diante de uma provação dolorosa (4.12). Na verdade, o sofrimento desses cristãos aponta não para recém convertidos, mas para cren¬tes de longa data. Assim, devemos concluir que a interpretação da epístola de Pedro como uma liturgia batismal é uma teoria que ainda não foi adequadamente provada.

4. Unidade
1 Pedro consiste de duas partes (1.1 - 4.11 e 4.12 - 5.14)? Defensores da hipótese de que a primeira parte da epístola é uma liturgia batismal vêem uma combinação de dois documentos independentes, mas alguns fatos apoiam a unidade de 1 Pedro. Em primeiro lugar, essas partes não são, de modo algum, desconexas, tendo em vista que se mostram claras as semelhanças nas escolhas das palavras e da gramática. A palavra sofrimento, por exemplo, aparece ao longo de toda a epístola e o uso do imperativo (que no grego com frequência aparece como particípio) é peculiar a ambas as partes da epístola.
Além disso, se as duas partes especializadas de l Pedro são colocadas lado a lado, apresentam muito do mesmo material. Os temas que aparecem em ambas as partes incluem o sofrimento por amor a Cristo (2.21; 4.13), sofrimento imerecido (3.17; 4.16), submissão à autoridade (2.13; 5.5), a pequena duração do sofrimento (l .6; 5.10), resistência ao mal (4.1; 5.9) e o fim de todas as coisas (4.7; 4.17).
Concluímos que l Pedro demonstra homogeneidade pelas citações do Antigo Testamento, de hinos e credo e de material de sermão. Tendo em vista os paralelos e semelhanças que aparecem ao longo da epístola, vemos a unidade de toda a epístola e não a desunião de duas partes independentes.
Por fim, se aceitamos a unidade da carta, não é necessário explicar por que um pós-escrito foi acrescentado a uma liturgia batismal e por que a liturgia foi transformada numa carta. É claro que uma rejeição da unidade da epístola levanta essas e outras questões que exigem respostas plausíveis. A unidade de l Pedro é evidente, a desunião é que deve ser provada.

G. Esboço de l Pedro
Eis um simples esboço de l Pedro que pode ser memorizado:
Introdução 1.1,2
Salvação 1.3-12
Santidade 1.13-2.3
Eleição 2.4-10
Submissão 2.11-3.12
Sofrimento 3.13-4.19
Conclusão 5.1-14

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